(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em primeiro de fevereiro de 1994)
“Pobre Ellen... o que se pode esperar de uma moça autorizada a usar cetim preto em seu baile de debutante?”
Era
de se imaginar Martin Scorsese lidando com tais preocupações? Ou com um
triângulo amoroso da alta (mas jeca) sociedade novaiorquina dos anos
1870? No entanto, foi ele quem se arriscou a adaptar
cinematograficamente A Era da Inocência (The age of innocence, 1920, que comento na tradução de Sieni Maria Campos), de Edith Wharton. O filme ganhou o título nacional de A época da inocência.
Scorsese,
no fundo, não está tão longe assim da sua temática habitual, que mostra
códigos de sobrevivência e adaptação (ou falta de). Em suas
obras-primas supremas, O touro indomável & Os bons companheiros,
tais códigos eram revelados na periferia, no submundo, e através da
extrema violência. A necessidade imediata e grosseira da sobrevivência
ou as demonstrações fisiológicas da violência não aparecem em A Era da Inocência.
Vemos, contudo, os valores da tribo tecendo impiedosamente o casulo em
torno do protagonista, Newland (vivido no filme pelo até agora
camaleônico Daniel Day Lewis), cuja postura quanto à etiqueta e
vestuário é tão meticulosa quanto a de um novaiorquino posterior,
Patrick Bateman, o “psicopata americano” criado por Bret Easton Ellis.
Bateman
tem de se movimentar no mundo do politicamente correto. Os ricos de
Edith Wharton podem se manter na “inocência”, podem mostrar-se
politicamente incorretos porque os privilégios e códigos (provincianos
que fossem) jamais eram discutidos, pareciam “fenômenos naturais”. Com
toda a sua vida esquizofrênica, Newland fica ao ponto de surtar,
interferindo na engrenagem social, ao apaixonar-se pela já referida
Ellen, a do cetim preto, prima de May, sua noiva (e depois, esposa).
Parece trivial. Não é. Parece Proust, pelo tratamento detalhista da
etiqueta social. Mas Wharton tem um outro belo texto, Ethan Frome,
que se passa num meio completamente diferente, quase primitivo de tão
agrário, e no entanto com problemas similares de renúncias e asfixias
morais.
Quando
nos mergulha no dilema de Newland, descortina criticamente a
mentalidade que sustenta a preocupação com o cetim preto. Estamos longe
de Jezebel, que girava em torno do uso de um vestido vermelho. No
melodrama de William Wyler (com Bette Davis) não se chegava ao cerne
das coisas, o vestido era um pretexto para situações carameladas e
atitudes descabeladas. Nas intrigas em torno do cetim preto há sangue
derramado (simbolicamente), e chegamos ao cerne das coisas.
Edith
Wharton criou um grande personagem masculino, porém as duas pontas
femininas do triângulo são muito mais desafiadoras, principalmente numa
transposição como é o caso da versão cinematográfica, e é ótimo terem
sido entregues às mais-que-competentes Michelle Pfeiffer e Winona Ryder.
Carisma e densidade incontestes de La Pfeiffer, mas Winona é uma
escolha particularmente feliz (após ter brilhado em Drácula,
digam o que quiserem), pois May é dificílima. Tem uma falsamente
passiva participação no desenrolar dos acontecimentos e é quem consegue,
subterraneamente, tecer o casulo que envolve e paralisa Newland,
consumando a expulsão de Ellen. E sempre “inocente”. O termo vilã não
lhe assenta, porém é uma admirável conspiradora e estrategista (e não
estaria nada deslocada no mundo de Henry James). Todavia, é seu pai, mr.
Welland, quem talvez melhor caracterize a “inocência” da elite
novaiorquina de então, pedindo para ser poupado de tudo o que a
existência tem de desagradável.
O
cetim preto, então, é um motivo tão forte para a exclusão (quando não
aniquilamento) de alguém, dentro de tão cerrado código, quanto uma
delação ou outros motivos já explorados pelo universo scorsesariano. São
signos diferentes que expressam uma mesma guerra social.
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