domingo, 16 de fevereiro de 2014

montes de leitura

As coisas que têm sumo: os sonetos de Vinicius de Moraes

cabecalho
De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
–Meu tempo é quando.  (Poética I, 1950)
***
Amo na vida as coisas que têm sumo
E oferecem matéria onde pegar
Amo a noite, amo a música, amo o mar
Amo a mulher, amo o álcool e amo o fumo. (primeiro quarteto de Soneto ao caju)
Livro de Sonetos 02
O meu Vinicius de Moraes (cujo centenário comemora-se agora em outubro, dia 19) não é aquele da primeira fase, muito enfronhado na linha católico-angustiada que atravessa nossa literatura modernista, nem o letrista de anos gloriosos da MPB, que mandou seu catolicismo para  a tonga da mironga do kabuletê.
O meu Vinicius de Moraes é um pouco mais restrito: é o de Orfeu da Conceição (1954) e sobretudo o de LIVRO DE SONETOS (1967), que comento aqui numa edição [aliás, uma reimpressão, de 2003] da Companhia das Letras, na qual aos 65 poemas reunidos originalmente (em vida, pelo próprio autor), foram acrescentados mais 9 inéditos. Dos 65, o primeiro soneto (Ária para assovio) traz 1936 como data; o último (Soneto de Maio), de 1967.
Vejamos do que tratam ambos, e do tom que o eu lírico assume em cada um deles.
Ária para assovio: “Inelutavelmente tu/Rosa sobre o passeio/Branca! e a melancolia/Na tarde do seio.// As cássias escorrem/Seu ouro a teus pés/ Conheço o soneto/Porém tu quem és?// O madrigal se escreve/ Se é do teu costume/Deixa que eu te leve.// (Sê…mínima e breve/A música do perfume/ não guarda ciúme.)” Malgrado a fatura impecável dos versos, é um eu lírico um tanto datado, invertebrado no seu vocabulário com um pé no simbolismo, no tom formalista que beira a cafonice, onde “a música do perfume” parece meio abstrata e chavão. Mas, como em qualquer soneto de Vinicius, com raras exceções, há sempre um trecho que se salva: “Conheço o soneto/Porém tu quem és?”
  Soneto de maio: “Suavemente Maio se insinua/ Por entre os véus de Abril, o mês cruel/ E lava o ar de anil, alegra a rua/ Alumbra os astros e aproxima o céu.// Até a lua, a casta e branca lua/Esquecido o pudor, baixa o dossel/E em seu leito de plumas fica nua/ A destilar seu luminoso mel.// Raia a aurora tão tímida e tão frágil/Que através do seu corpo transparente/ Dir-se-ia poder ver o rosto//Carregado de inveja e de presságio/Dos irmãos Junho e Julho, friamente/ Preparando as catástrofes de Agosto…”
Pode-se afirmar que aí se reúnem as qualidades (a maestria da forma, na maleabilidade com que ele lida com o verso ora mais longo, ora mais curto) com seus defeitos, suas características mais datadas (a casta e branca lua, com seu pudor esquecido; o corpo transparente da aurora), que já se faziam gritantes nos anos 1960.
Portanto, é no meio da travessia 1936-1967 que teremos de encontrar um Vinicius menos convencional, menos atado a formulações estereotipadas, e que se nunca se distinguiu pela profundidade da visão lírica pessoal, faz da forma-soneto uma superação das suas limitações, aproximando-se dos grandes nomes coetâneos (João Cabral, Jorge de Lima, Drummond, Murilo Mendes, Cecília Meireles).
Temos inúmeros exemplos do “cherchez la femme” que tanto ocupou o poeta, já no Soneto da devoção (1937), a mulher que se arremessa, fria e lúbrica, nos seus braços, é tanto “flor de melancolia”  (ai, senhor!), como também (e aí começa o diferencial), aquela que diz “nomes feios”, e que é talvez uma “cadela”: “Essa mulher que a cada amor proclama/ A miséria e a grandeza de quem ama/ E guarda a marca dos meus dentes nela.// Essa mulher é um mundo!—uma cadela/ Talvez…—mas na moldura de uma cama/Nunca mulher nenhuma foi tão bela!”
Pode-se tomar como um momento-chave, paradigmático, desse topos tão caro a Vinicius, e que o conecta com toda uma tradição clássica, mesmo que ele ouse contornos mais sensuais, terrenos e prosaicos, chegando a versos de extrema beleza: “Meu coração é um vago de acalanto/Berçando versos de saudade imensa” (Soneto de contrição), mesmo em sonetos mais irregulares.
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Essa presença feminina avulta até nos Sonetos de meditação: “Uma mulher me ama. Se eu me fosse/ Talvez ela sentisse o desalento/ Da árvores jovem que não ouve o vento/ Inconstante e fiel, tardio e doce// Na sua tarde em flor. Uma mulher/ Me ama como a chama ama o silêncio/ E o seu amor vitorioso vence/ O desejo da morte que me quer.// Uma mulher me ama. Quando o escuro/ Do crepúsculo mórbido e maduro/ Me leva a face ao gênio dos espelhos// E eu, moço, busco em vão meus olhos velhos/ Vindo de ver a morte em mim divina:/ Uma mulher me ama e me ilumina.” (note-se também uma estratégia típica do poeta: a repetição; em outros, uma sequência verbal produz um efeito expressivo vigoroso; sem contar o uso da conjunção “e”).
Um ponto alto, a meu ver, é Soneto da mulher ao sol: “Uma mulher ao sol—eis todo o meu desejo/Vinda do sal do mar, nua, os braços em cruz/ A flor dos lábios entreaberta para o beijo/A pele a fulgurar todo o pólen da luz.//Uma linda mulher com os seios em repouso/ Nua e quente ao sol—eis tudo o eu preciso/O ventre terso, o pêlo úmido, e um sorriso/ À flor dos lábios entreabertos para o gozo.// Uma mulher ao sol sobre quem me debruce/Em quem beba e a quem morda e com quem me lamente/ E que ao se submeter  se enfureça e soluce//E tente me expelir, e ao me sentir ausente/Me busque novamente—e se deixa dormir/ Quando, pacificado, eu tiver de partir…” (1956)
A exaltação da fugidia e contraditória, mas eternamente presente figura feminina se associa a uma meditação sobre o Amor, de uma forma mais geral, na tradição petrarquiana ou camoniana, muito entretecida por antíteses: “De repente do riso fez-se o pranto/Silencioso e branco como a bruma/ E das bocas unidas fez-se a espuma/ E das mãos espalmadas fez-se o espanto./ De repente da calma fez-se o vento/Que dos olhos desfez a última chama/ E da paixão fez-se o pressentimento/ E do momento imóvel fez-se o drama.// De repente, não mais que de repente/ Fez-se de triste o que se fez amante/ E de sozinho o que se fez contente.// Fez-se do amigo próximo o distante/ Fez-se da vida uma aventura errante/ De repente, não mais que de repente.” (1938). O Soneto da Separação talvez seja o mais famoso entre os sonetos de Vinicius, junto com Soneto da Fidelidade: “De tudo, ao meu amor serei atento/ Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto/ Que mesmo em face do maior encanto/ Dele se encante mais meu pensamento.// Quero vivê-lo em cada vão momento/ E em seu louvor hei de espalhar meu canto/ E rir meu riso e derramar meu pranto/ Ao seu pesar ou seu contentamento.// E assim, quando mais tarde me procure/ Quem sabe a morte, angústia de quem vive/ Quem sabe a solidão, fim de quem ama// Eu possa me dizer do amor (que tive):/ Que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure.” (1939).[1]
Como em todos os nossos poetas modernistas, encontramos sonetos para artistas e escritores, sobretudo amigos e contemporâneos (Octavio de Faria, Portinari, Rubem Braga, Lasar Segall[2], Graciliano Ramos[3] , Pablo Neruda,  Rafael Alberti, mas também para Katharine Mansfield, Baudelaire,  Eisenstein—este último merece um tríptico, e no último temos este lindo trecho: “(…) O cinema/ É o que não se vê, é o que não é/ Mas resulta: a indizível dimensão”).
Temos os sonetos de lugares, como referência espacial tão somente (o Soneto de Oxford, não especialmente memorável; o Soneto de Londres, em parte vazado no estilo antitético característico: “(…) acesa/ A noite, em brancas trevas o caminho// Da vida, e a solidão do burburinho…”); ainda o Soneto de Montevidéu; ou a partir da rememoração de circunstâncias vividas: Pôr-do-sol em Itatiaia[4], Soneto de Florença (“Torres, cúpulas, claustros: renascença// Das coisas que passaram mas que urgem…”).
E as estações, o carnaval, o dia de domingo, os quatro elementos, com altos e baixos, mais altos que baixos.
Para encerrar, um dos momentos mais altos, quase cinquentenário:
Um gato vivo é qualquer coisa linda
Nada existe com mais serenidade
Mesmo parado ele caminha ainda
As selvas sinuosas da saudade

De ter sido feroz. À sua vinda
Altas correntes de eletricidade
Rompem do ar as lâminas em cinza
Numa silenciosa tempestade.

Por isso ele está sempre a rir de cada
Um de nós, e ao morrer perde o veludo
Fica torpe, ao avesso, opaco, torto

Acaba, é o antigato: porque nada
Nada parece mais com o fim de tudo
Que um gato morto. (Soneto do gato morto,  novembro de 1963).
Mesmo sem mitificar ou mistificar Vinicius de Moraes como figura humana ou poeta, como não ter a maior consideração por ele depois de um tal soneto?
(escrito especialmente para o blog, outubro de 2013)
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[1] Lindo também é o Soneto da espera: “Aguardando-te, amor, revejo os dias/Da minha infância já distante, quando/ Eu ficava, como hoje, te esperando/ Mas sem saber ao certo se virias.// E é bom ficar assim, quieto, lembrando/ Ao longo de milhares de poesias/ Que te estás sempre e sempre renovando/ Para me dar maiores alegrias.// Dentro em pouco entrarás, ardente e loura/Como uma jovem chama precursora/ Do fogo a se atear entre nós dois// E da cama, onde em ti me dessedento,/ Tu te erguerás como o pressentimento/ De uma mulher morena a vir depois.” (1963)
[2] “De inescrutavelmente no que pintas/Como num amplo espaço de agonias/ Imarcescível música de tintas/ A arder na lucidez das coisas frias” (1943).
[3] “(…) sua máscara  austerizou-se/Numa preclara decisão eterna” (de Máscara mortuária de Graciliano Ramos)
[4] Do qual transcrevo os tercetos: “Calmo, subjacente/ O vale infinito/ A estender-se múltiplo//Inventando espaços/Dilatando a angústia/Criando o silêncio…”
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25/06/2013

O “VAMOS PRA RUA” DE JULIO CORTÁZAR: OS 40 ANOS DE “O LIVRO DE MANUEL”

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(a resenha deste post foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, sem notas de rodapé ou trecho selecionado, em A TRIBUNA de Santos, de 25 de junho de 2013)
VER TAMBÉM NO BLOG:
http://armonte.wordpress.com/2011/05/03/geometria-metafisica-os-lados-possiveis-de-um-octaedro/
http://armonte.wordpress.com/2011/05/03/o-terceiro-olho-da-narrativa-brechas-na-superficie-do-mundo/
http://armonte.wordpress.com/2011/05/03/cronopios-e-famas-em-cruzeiro/
Dedico o texto  abaixo a todos os Cantos da minha amiga Maria Valéria Rezende
“…  vivimos un tiempo en que todo está saltando por el ayre e sin embargo ya ves, esos esquemas siguen fijos en gentes como nosotros, ya te das cuenta de que hablo de los pequeñoburgueses o de los obreros, la gente nucleada y familiada y casada y chimeneada y proleada, ah mierda, mierda…”[1]
“…hasta que el ovillo caiga-en las zarpas del gato cósmico…”[2]
Talvez fosse mais conveniente comentar o cinquentenário da publicação original de Rayuela- O jogo da amarelinha, um dos romances admiráveis do século passado. No entanto, achei imperativo lembrar outro título de Julio Cortázar (1914-1984), O livro de Manuel (Libro de Manuel), também em aniversário, mais discreto (40 anos), pois tem tudo a ver com o momento de efervescência social que vivemos e me permite fazer objeção a um equívoco amiúde repetido a respeito do escritor argentino: de que, Amarelinha à parte, ele seria mais contista do que romancista. Bem, eu adoro suas coletâneas e miscelâneas (no ano passado, uma delas também chegou ao meio-século, Histórias de Cronópios e de Famas), sem que deixe de constatar que ele publicou em vida quatro romances notáveis (além dos já citados, temos também Os prêmios e 62-Modelo para armar).
Quando apareceu O livro de Manuel em 1973, o engajamento político de Cortázar era bem mais efetivo que nas décadas anteriores, mesmo porque vários países do nosso continente estavam sob a égide de ditaduras militares de triste memória. Pela terceira vez (após Amarelinha e Modelo para armar), ele punha em movimento uma engrenagem ficcional abordando sul-americanos vivendo em Paris, formando uma tribo muito peculiar junto a europeus “desgarrados”, só que com um novíssimo ingrediente: o ativismo político, tanto que a narrativa se encaminha para o sequestro de um Formigão (termo aplicado a um agente das forças repressivas).
Além da presença quase mágica do que poderíamos chamar de instância autoral (referida como “El que te dije”[3], com variações), o que permite a Cortázar brincar com a suposta ubiquidade de quem escreve um livro com relação ao seu material, aparece um alter ego contumaz, Andrés Fava, que convive com os engajados, sem se atrever a dar o passo adiante, enredado em suas buscas existenciais particulares ( “pensó que Andrés se quedaba como siempre un poco atrás (…) Al pobre lhe había tocado justo la generación anterior (…) hay toneladas como Andrés, anclados en el París o en el tango de su tiempo, en sus amores y sus estéticas y sus caquitas privadas”[4]), tanto que Ludmilla, um de seus envolvimentos amorosos, o troca pelo revolucionário Marcos, o qual não tem nada dos estereótipos habituais associados ao tipo[5], o que fará com que ela participe do sequestro, quase como uma iniciação. É o “vamos pra rua” do universo cortazariano.
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O título do romance decorre do fato de que, entre os membros do grupo, encontra-se o casal Patricio-Susana; esta recorta notícias de jornais num grande álbum para que o filho, ainda um bebê, às vezes sob cuidados um tanto negligentes (“Era previsible que Lonstein se olvidara  a cada rato de Manuel , que chupaba melancólicamente los flecos de la cortina de la ventana jamás  lavado por mano humana desde 1897 (…) Ya antes de tocar el timbre Andrés oía las carcajadas de Lonstein que lo saludó con  la mano izquierda  pues de la derecha  le colgaba un recorte  sin duda  destinado a que Manuel lo leyera alguna vez  si los caldos de cultivo del fleco  lo dejaban llegar a la alfabetizatión”[6]), se inteire —no futuro —do Zeitgeist, o “Espírito da Época”. Aí vemos como o autor de Todos os fogos o fogo nunca abdica de experimentar formas e possibilidades: muito antes de várias realizações desse tipo[7], mais cultuadas, esse subestimado e injustamente esquecido romance incorpora ao tecido narrativo fac símiles de  notícias que se incorporam às discussões e incidentes da trama. Não é o único recurso inventivo de que Cortázar lança mão, decerto, contudo é o mais vistoso.
Na verdade, O livro de Manuel concentra de forma emocionante o pendor transgressor de um dos maiores mestres que a ficção já conheceu: em Cortázar, sempre há uma programática de vida, de desautomatização das formas de comportamento, da linguagem, dos relacionamentos; mas sua cosmovisão jamais fora tão claramente utópica, na  mais vibrante acepção da palavra, “de lo que podía dar todo su sentido a cualquier proyecto de futuro”[8], contra “la resistencia absurda de un mundo resquebrajado que sigue defendiendo  rabiosamente  sus formas más caducas”[9], uma das minhas citações favoritas e mais repetidas.
E O livro de Manuel, 40 anos depois, com sua força intacta, mostra como são mentirosos e paspalhos os pronunciamentos constantes de que a literatura “não serve para nada” ou que  “não tem nada a dizer”. É claro que ela deve utilizar todas as possibilidades mais ousadas de fabulação e que pode (e deve) ir até a contrapelo da linguagem vigente e usual. Mas uma obra fascinante, rica e complexa como a de Cortázar mostra que um escritor relevante tem muito a dizer sobre o mundo; caso contrário,  realmente não servirá para nada, a não ser a gaveta, ou a lata de lixo.
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TRECHO SELECIONADO
“Qué haría Marco si los azares de la Joda lo llevaran un dia a ser eso que las tabletas asirías llamaban jefe de hombres? Su idioma corriente es como su vida, una alianza de iconoclastia y creación, reflejo de lo revolucionário entendido antes de todo sistema; pero ya Vladimir Ilich,  sin hablar de León Davidovich y más de este lado y este tiempo Fidel, vaya si vieron lo que va del dicho al hecho, de la calle al timón. Y sin embargo uno se pregunta el porqué de esse pasaje de um habla definida por la vida,  como el habla de Marcos,  a una vida definida por el habla,  como los programas de gobierno y el innegable puritanismo que se guarece en las revoluciones. Preguntarle a Marcos alguna vez si va a olvidarse  del carajo  y de la concha de tu hermana en caso de que le llegue la hora de mandar; mera analogía  desde luego, no se trata de palabrotas sino de lo que late detrás,  el dios de los cuerpos, el gran río caliente del amor, la erótica de una revolutión que alguna vez tendrá que optar (ya no éstas sino las próximas, las que faltan, que  son casi todas) por outra definición del hombre; porque en que lo llevamos visto el hombre nuevo suele tener cara de viejo apenas ve una minifalda o una película de Andy Warhol. Vamonos a dormir, pensó El que te dije,  bastante teorizan los de la Joda para que yo les aporte estas cuatro pavadas demasiado obvias.  Pero me gustaría saber qué  piensa Marcos de eso,  cómo lo viviría si le llegara la hora…”[10]
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[1] Na versão de Olga Savary (publicada pela Nova Fronteira, em 1984): “…vivemos um tempo em que tudo está voando pelos ares e no entanto veja só, esses esquemas permanecem fixos em pessoas como nós, dá para perceber que falo dos pequeno-burgueses ou dos operários, o pessoal nucleado e familiado e casado e chamineado e proleado, ah merda, merda…”
[2] Traduzido assim: “…até que o novelo caia nas garras do gato cósmico…”
[3] “Aquele de quem lhe falei”, na versão de Olga Savary.
[4] Em português: “pensou que Andrés ficava como sempre um pouco atrás (…) Ao pobre Andrés coubera justamente a geração anterior (…) há toneladas como Andrés, ancorados na Paris ou no tango de seu tempo, em seus amores e suas estéticas e seus cocozinhos privados…”
[5] “… y pensé que Marcos sabía ver las cosas desde más de um lado,  que no era el caso de los otros orientados resueltamente  hacia la Joda. En esa comedia idiota había acaso como una esperanza de Marcos, la de no caer  en la especialización total, conservar un poco de juego, un poco de Manuel en la conducta. Vaya a saber, che. Capaz que tipos como Marcos y Oscar (del que fui sabiendo cosas  por el que te dije) estaban en la Joda por Manuel, quiero decir que lo hacían por el, por tanto Manuel en tanto rincón del mundo, queriendo ayudarlo a que algún dia entrara en un ciclo diferente y a la vez  salvándole algunos restos del naufragio total…”; na tradução: “… e pensei que Marcos sabia enxergar as coisas de mais de um lado, que não era o caso dos outros orientados resolutamente em direção à Roda. Nessa comédia idiota havia possivelmente como que uma esperança para Marcos, a de não cair na especialização total, conservar um pouco de jogo, um pouco de Manuel na conduta. Sei lá, tchê. É possível que caras como Marcos e Oscar (do qual fui sabendo coisas por Aquele de quem lhe falei) estivessem na Roda por Manuel, digo que o faziam por ele, por tanto Manuel em tanto canto do mundo, querendo ajudá-lo para que algum dia entrasse em um ciclo diferente e ao mesmo tempo salvando-lhe alguns restos do naufrágio total…”
[6] Traduzido como se segue: “Era previsível que Lonstein se esquecesse a cada momento de Manuel, que chupava melancolicamente as franjas da cortina da janela  jamais lavada por mão humana desde 1897 (…) Já antes de apertar a campainha Andrés ouvia as gargalhadas de Lonstein, que o cumprimentou com a mão esquerda pois da direita pendia um recorte sem dúvida destinado a ser lido algum dia por Manuel se os caldos de cultivo da franja o deixassem chegar até a alfabetização”; nesse passo da narrativa, os “apolíticos”, por assim dizer, ou melhor dizendo, não-diretamente engajados, tomam conta de Manuel, enquanto se efetiva o sequestro.
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[7] Entre outros, lembro do Zero, de Ignácio de Loyola Brandão. Entre outras derivações de Libro de Manuel, tivemos também um belo filme (pelo menos, foi o que achei há décadas atrás) de Alain Tanner, Jonas que terá 25 anos no ano 2000 (1976).
[8]  Em tradução: “do que podia dar todo o seu sentido a qualquer projeto de futuro”
[9] Traduzido como: “a resistência absurda de um mundo rachado que continua defendendo raivosamente suas formas mais caducas”.
[10] A tradução do trecho, por Olga Savary:
“Que faria Marcos se os acasos da Roda o levassem um dia a ser isso que as tabuletas assírias chamavam chefe de homens? Seu idioma corrente é como sua vida, uma aliança de iconoclastia e criação, reflexo de revolucionário entendido antes de todo sistema; mas já Vladimir Ilich, sem falar de Léon Davidovich e mais deste lado e deste tempo Fidel, puxa vida se viram à distância que há do dito ao fato, da rua ao leme. E no entanto a gente se pergunta o porquê dessa passagem de uma fala definida pela vida, como a falação de Marcos, a uma vida definida pela fala, como os programas de governo e o inegável puritanismo que se guarnece nas revoluções. Perguntar a Marcos alguma vez se vai se esquecer da porra e da puta que pariu no caso de que lhe chegue a hora de mandar; mera analogia imediata, não se trata de palavrões mas do que palpite por detrás, o deus dos corpos, o grande rio quente do amor, a erótica de uma revolução que alguma vez terá que optar (já não estas mas as próximas, as que faltam, que são quase todas) por outra definição do homem; porque por enquanto o homem novo costuma ter cara de velho assim que vê uma minissaia ou um filme de Andy Warhol. Vamos dormir, pense Aquele de quem lhe falei, teorizam bastante os da Roda para que eu lhes traga estas quatro idiotices demasiado óbvias. Mas gostaria de saber o que pensa Marcos disso, como o viveria se lhe chegasse a hora.”
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22/03/2013

O LIVRO VERMELHO de Jung: “Assim falou Zaratustra”, “Imitação de Cristo”, “Divina Comédia” e “Interpretação dos sonhos” num mesmo pacote

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(o texto abaixo é uma versão resumida e alternativa à que eu propus à TRIBUNA de Santos e que foi publicada em 07 de junho de 2011; há, portanto, três versões: uma, bastante extensa, e que pode ser encontrada no blog:
http://armonte.wordpress.com/2013/03/22/forever-jung-o-cinquentenario-da-sua-morte-e-o-livro-vermelho/; uma intermediária, a que saiu em página inteira no referido jornal; e esta, no formato de uma resenha usual — preparada, caso A TRIBUNA não topasse minha proposta. Como foi lançada uma versão “light” pela Vozes do volume original, resolvi fazer o mesmo):
Em 6 de junho de 1961, morreu Carl Gustav Jung, o pioneiro que aproximou o tratamento psicanalítico das concepções orientais e abriu caminho no Ocidente para a proliferação das terapias alternativas, às vésperas dos seus 86 anos. Para marcar o evento, a editora Vozes lançou nova edição da sua Obra Completa , mas  o evento memorável desse cinqüentenário é a publicação de O Livro Vermelho, inclassificável e original texto que surgiu do confronto-mergulho de Jung com seu próprio inconsciente. Pena que a Vozes apostou mais no instinto de aquisição do que no instinto de leitura. Teria sido mais sábio lançar todo o luxuoso aparato fac-similar (maravilhoso), com o texto manuscrito, os desenhos, as mandalas, no formato gigante que foi adotado, e o texto traduzido num volume à parte, mais manipulável. Da maneira como ficou, torna-se quase impossível ler O Livro Vermelho sem riscos musculares. Eu me sentia como que saído do Monte Sinai, um Moisés carregando as (pesadíssimas) Tábuas da Lei. Tudo bem que é um mergulho nos mais recônditos arquétipos, mas exagerou-se na dose!
Em 1913, aos 38 anos, o grande pensador suíço estava em crise: rompera com Freud, do qual era o principal discípulo, e apesar de já ter publicado muito, ainda não dera corpo às concepções psíquico-místicas (arquétipos, inconsciente coletivo, princípio de individuação, animus e anima, o si mesmo, a sombra, os tipos psicológicos), que serão o fundamento da Psicologia Analítica junguiana. Por essa época, passou a ter uma série de visões, sonhos acordados, que para ele, posteriormente, se revelariam antevisões da Primeira Guerra. Isso significaria que havia uma conexão entre os símbolos da psique individual e os da coletividade.
Jung, então, desenvolveu um método chamado “imaginação ativa” , no qual deixava “falar” a sua “alma”, o seu eu interior, aceitando todos os seus conteúdos. Registrou o resultado  num caprichado volume, o Liber Novus, cujo formato lembra muito os manuscritos medievais (na reprodução fac-similar é uma festa para os olhos). Esse livro pessoal se tornou mítico, com a alcunha de O Livro Vermelho, e só recentemente os herdeiros permitiram sua publicação.
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Jung produziu uma mistura torva e inclassificável de Assim falou Zaratustra, Imitação de Cristo, A Divina Comédia e A Interpretação dos Sonhos, rompendo as fronteiras do místico, do literário, do filosófico e do alegórico-simbólico. Num processo de introversão, deixando de lado os compromissos da personalidade “exterior”, sua alma  vivencia um descenso (que também é uma ascensão, já que nesse ponto da psique os contrários se anulam), encontrando personagens enigmáticas, que representam partes cindidas do Eu (o profeta Elias e Salomé, por exemplo, “Logos” e “Eros” num mesmo contexto). O cadáver de um herói (Siegfried) aparece boiando já que ele implica um modelo a ser imitado, um ideal de perfeição e acabamento, e é preciso desatravancar o caminho e abolir as divisões: “Devo dizer que o Deus não podia vir a ser antes que o herói tivesse sido assassinado. O herói, como nós o entendemos, tornou-se o inimigo de Deus, pois o herói é perfeição… não haverá mais nenhum herói e ninguém que o possa imitar… O novo Deus ri da imitação e do seguimento de exemplo. Ele força a pessoa através Dele mesmo…” Assim vai nascendo a “função transcendente”, aquela que permite a colaboração dos conteúdos conscientes e inconscientes.
Ao contrário da interpretação dos sonhos freudiana, onde eles—por meio dos deslocamentos e disfarces—revelam de forma latente  o trabalho do inconsciente que seria preciso tornar manifesto e que remontaria a causas pretéritas, escondidas na infância individual, a escavação do onírico feita por Jung se volta mais para a revelação do futuro que se oculta nas dobras do imaginário. Não é á toa que anunciou o trabalho de toda uma vida.
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____________________
Serviço: O Livro Vermelho- Liber Novus (2009), de C.G. Jung (1875-1961). Tradução de Edgar Orth, Gentil A. Titton e Gustavo Barcellos, revista por Walter Boechat. Editora Vozes.

09/06/2012

Borges: de que secretas regiões da astronomia ou do tempo, de que antigo e agora incalculável crepúsculo, haverá alcançado este arrabalde?


(esta resenha foi publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em 03 de julho de 2001, antes da Indústria Borges ser transferida para a Companhia das Letras; nesta nova fase, O LIVRO DA AREIA foi traduzido por Davi Arrigucci Jr.)
Além de editar a Obra Completa de Jorge Luis Borges (1899-1986), em quatro volumes, a Globo está relançando alguns títulos avulsos, que já trazem a bem-vinda mudança (na verdade, um resgate) do logotipo da editora.
E assim como fez a Companhia das Letras com as obras de Milan Kundera, os treze contos de O LIVRO DA AREIA (El Libro de Arena, Argentina-1975, em tradução de Lígia Morrone Averbuck) foram mesmo revisados (por Maria Carolina Araújo & Jorge Schwartz). Corrigiram-se, por exemplo, alguns trechos mal alinhavados em A noite dos dons; lia-se, antes: “Com uma chicotada, Moreira deixou-o estendido de costas no solo. Caiu de costas e morreu movendo as patas”; agora se lê algo mais eficiente e fiel ao original: “Com uma chicotada, Moreira deixou-o estendido no chão. Caiu de costas e morreu movendo as patas” (“De un talerazo, Moreira ló dejó tendido en el suelo. Cayó de lomo y se murió moviendo las patas”).
No entanto, o título anteriormente dado, A noite das dádivas, era bem melhor, e sente-se uma fidelidade demasiada ao espanhol em certas modificações. Por exemplo, se Borges pode colocar em seu original Adolfo Hitler, ao invés de Adolf, por que Adán de Bremen não pode virar Adão?

Em Como e Por que Ler, Harold Bloom afirma que o conto foi dominado, grosso modo, por duas tendências. Por um lado, a tchekhoviana, seguindo o impressionismo do autor de A dama do cachorrinho; por outro, a borgiana: “Em Borges, ouvimos a voz solitária de um elemento submerso no turbilhão, uma voz acossada por uma pletora de vozes literárias que a precederam (…) Borges encanta-nos e transporta-nos a um mundo de forças impessoais, onde a memória de Shakespeare constitui um imenso abismo, capaz de tragar-nos, fazendo com que percamos quaisquer resquícios da nossa pessoa”.
As palavras de Bloom caracterizam bem as narrativas (quase todas em primeira pessoa) de O LIVRO DA AREIA: nelas, encontramos solitários, senão misantropos: “Para um celibatário entrado em anos, o oferecido amor é um dom que não se espera” (Ulrica); “Por indecisão ou negligência ou por outras razões, não me casei e agora estou só. Não me dói a solidão, já é bastante esforço alguém tolerar a si próprio e suas manias” (O Congresso); “O homem esquece que é um morto que conversa com mortos” (There are more things); “Moro sozinho (…) Essas duas preocupações agravaram minha já velha misantropia” (O Livro de Areia).
Acossados por situações fantasmagóricas, onde o “eu” se dilui e a experiência de vida se torna sonho, esses solitários nem sequer acreditam na alteridade, pois um torna-se o outro e uma experiência alheia tem o mesmo peso do sonho: “No curso fui muitos, mas esse torvelinho foi um longo sonho”, lê-se em Undr. Dessa forma,  duas posturas divergentes, como a dos acadêmicos que protagonizam O suborno acabam indiferenciando-se. Borges já fizera uma experiência inesquecível nesse terreno, em Os Teólogos, um dos seus maiores contos. Como diz o narrador de O Congresso: “Haverá na terra algo sagrado ou algo que não o seja?”.

Mesmo que tudo seja sagrado, em O LIVRO DA AREIA encontramos dois textos que despertam aversão: O Outro & Utopia de um homem que está cansado.
O Outro ainda tem a fascinante situação do encontro entre o Borges de quase 70 anos com seu “eu” de 18, onde semelhança e alteridade entram em discussão. O conto torna-se discutível e antipático quando percebemos que o enfadado escritor aproveita o encontro para desautorizar seu “eu” jovem, suas opiniões, suas paixões políticas. E lemos pérolas do tipo: “A América, presa pela superstição da democracia, não se decide a ser um império” !!!!????
Já o desagradável Utopia de um homem que está cansado, que irrita desde o título (se ele estava tão cansado, por que não se matou de uma vez?), narra uma visita de Borges ao futuro, o qual se apresenta árido, povoado por homens tão enfadados quanto ele próprio e que vivem uma espécie de nirvana auto-complacente, com direito a um elogio do suicídio. O tom é blasé, permitindo-se até uma brincadeira  leviana com o holocausto: “É o crematório… dentro, está a câmara letã. Dizem que foi inventada por um filantropo cujo nome, creio, era Adolf Hitler”!!!???
Nesses passos em falso do mais importante autor da segunda metade do século XX, sentimos que ele está retocando a imagem que esculpiu para a mídia, a sua personalidade-clichê. Mas seis outros textos é que compensam a leitura de O LIVRO DE AREIA: 1) o conto-título, no qual se imagina um livro monstruoso porque infinito e irrepetível; 2) O Congresso, talvez o ponto alto da coletânea, no qual uma confraria torna-se tão abrangente que se confunde com o universo, tal como já acontecera com a loteria da Babilônia, ou tal como a memória de Funes, que anulava-se por não ser seletiva, por se confundir com a experiência; 3) O espelho e a máscara e 4) Undr, dois relatos que se passam em países remotos e lendários, onde o universo  é reduzido a uma única palavra (que pode ser qualquer uma), e que trazem a marca do melhor Borges; 5) A noite dos dons (meu favorito pessoal) e 6) Avelino Arredondo, que se acrescentam a uma das vertentes mais férteis do grande escritor argentino, o uso da história e da mitologia dos pampas e da banda oriental (Avelino, por exemplo, é o uruguaio que assassina o presidente Idiarte Borda, em 25 de agosto de 1897).
Sendo uma das melhores obras da fase final de Borges, O LIVRO DA AREIA funciona tanto para o leitor que se inicia na sua leitura, servindo como ótima introdução, como também para o leitor já aficionado, que pode apreciá-lo (às vezes, não) no exercício de sua maestria, depois de passar pelos desafios das suas criações supremas, Ficções & O Aleph, diante das quais (e do seu autor) a reação coincide com a experimentada pelo protagonista no final da lovecraftiana There are more things: “Como seria o habitante? Que podia buscar neste planeta, não menos atroz para ele do que para  nós? De que secretas regiões da astronomia ou do tempo, de que antigo e agora incalculável crepúsculo haveria alcançado este arrabalde e esta precisa noite? (…) Meus pés tocaram o penúltimo lance da escada, quando senti que algo subia pela rampa, opressivo e lento e plural. A curiosidade pôde mais do que o medo e não fechei os olhos.”

14/04/2012

O LIVRO DOS MANDARINS: sátira deliciosa à linguagem da globalização


(resenha publicada  originalmente  em A TRIBUNA de Santos, em 19 de abril de 2011)
A China e os países islâmicos do norte da África não saem do noticiário. Um dos mais talentosos romances publicados neste novo século entrelaça essa complicada geopolítica em que a palavra “mercado” é a tônica dominante: O Livro dos Mandarins, de Ricardo Lísias, autor que eu conhecia apenas de uma leitura anterior, Duas praças, que não me preparara para essa explosão de exuberância.
Paulo, o protagonista, é executivo de um banco multinacional. Admirador fervoroso das idéias e da trajetória do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ele impressiona os superiores com seu visionarismo corporativo “até atingir o cargo de diretor do Setor de Desenvolvimento… .  Sua função era basicamente recolher dados e redigir relatórios para que os outros setores do banco pudessem tomar decisões com maior embasamento… foi designado para ocupar o posto principal do Projeto China, uma espécie de força-tarefa que o banco criou para estudar, em Pequim, como poderia lucrar com o desenvolvimento daquele país tão interessante… porém, ele começou a sentir que era o momento de mergulhar em alguma coisa mais pessoal, mesmo que isso significasse um recomeço. Foi então que surgiu a Confucius, uma empresa de consultoria cujo principal objetivo é dar acompanhamento a executivos e oferecer palestras e minicursos de atualização…” (além disso, ao longo desse percurso, Paulo prepara um “Livro dos Mandarins”,  manual para qualquer um que deseje obter sucesso e realização).
Esse resumo pseudo-sério faz parte da pândega machadiana que permeia o estilo de Lísias em O livro dos mandarins. Como todos aqueles que criam um romance único, ele plasmou uma linguagem original e inimitável para satirizar e demolir a mentalidade capitalista cuja impregnação atávica de ganância e arrivismo é maquiada com chavões do senso comum, manipulados pelos gurus da auto-ajuda e da neurolingüística (Paulo se orgulha até de ter criado a “lingüística corporativa” ao estudar os ideogramas chineses). E ás vezes até quem os utiliza de forma oportunista acredita mesmo nesses chavões, que acabam substituindo a realidade.

Na primeira parte, absolutamente fabulosa, enquanto Paulo vai se qualificando para a vaga que todos cobiçam,elaborando suas idéias-chaves, a narrativa adota um tom prognóstico, antecipando incidentes futuros de sua brilhante carreira na China. Depois, entretanto, tudo se revela uma ficção: ele não foi designado para a China coisa nenhuma, e sim infiltrado no Sudão, de um modo “informal”, para dizer o mínimo, pois ali as condições para negócios são, digamos, mais turvas.
Paulo nunca deixará de dizer que esteve na China, e toda a sua empresa de “mentoring, coaching e counseling” é baseada nessa experiência forjada. Mais ainda, na divertidíssima segunda parte, Sudão e China intercambiam-se o tempo todo na narrativa, e prostitutas sudanesas cujo maior apelo (os homens ficam fissurados) é a mutilação genital praticada ancestralmente, depois de serem chamadas, todas, de Salma (os mesmos nomes são permutados entre inúmeros personagens[1]) recebem as alcunhas de Liu Xan Liu Xin e Liu Xun.  No Brasil, elas (após uma fuga rocambolesca do Sudão, que considero as páginas mais fracas do romance, felizmente são poucas) se tornam “gueixas massagistas” que oferecem relaxamento a empresários na recém-criada Confucius (um dos momentos mais deliciosos de O Livro dos Mandarins  ocorre quando a noiva de Paulo se depara com  o grupo, supostamente oriundo da China, no aeroporto). E farão mais sucesso do que os serviços de “mentoring, coaching e counseling” do visionário Paulo, o que encaminhará a terceira parte para um tom mais de chanchada, sem que o romance perca seu virtuosismo e graça.
O maravilhoso romance de Ricardo Lísias, cujas soluções criativas eu mal arranhei nesta resenha, descortina para o leitor tanto um mundo de mensagens subliminares, um mundo emblematizado por aquela cena de lavagem cerebral de Sob o domínio do Mal, de John Frankenheimer, na qual, sob a aparência de plácidas senhoras tomando chá e discutindo flores, ocultam-se militares chineses manipulando mentes, como também  um mundo dominado pela propaganda, mesmo que a mais mentirosa e absurda, como a de O segredo do bonzo, de Machado de Assis. O mundo em que vivemos.


[1] Eu adoro a maneira como Paulo vai ganhando epítetos que substituem seu nome ao longo da narrativa, ora de forma elogiosa, ora de forma depreciativa:
o homem-paulo; Maozinho; Pau**; Pa***; P****; *****; o branquelo; o grande amigo brasileiro; este aqui (ou neste aqui); Belé; Belé porra nenhuma; Versati (ou Versatinho); o bobo; Paulinho; exceção; o menino; um homem-feito; ming ming; o marido dela; o brasileirinho; o amigo aqui; o samurai chinês; seu malandrinho; o homem mais inteligente do mundo; o desgraçado; grande bvndão; essa mula (dessa mula); aquele cara que foi para a China; o doutor; muito detalhista e metódico; o autor; o escritor de verdade; o torto; o homem realizado; qualquer escritor, além de um ideograma chinês que não conseguirei reproduzir aqui.
Fiquei tentado a fazer várias comparações com autores como Don DeLillo (Cosmópolis), na capacidade de extrair material épico mesmo de situações pós-modernas, ou ainda  com Joan Didion (Democracia & A última coisa que ele queria) ou, em certo sentido,  com certos John Updikes.
Mas creio que a similaridade mais tangível é com Machado de Assis mesmo. O livro dos mandarins é o Quincas Borba do nosso tempo.

03/12/2011

ENCRUZILHADA DE BECOS PARA PORTUGAL

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(resenha publicada de forma mais condensada em A TRIBUNA de Santos, em 17 de maio de 2011)
“Talvez ir para a França fosse uma espécie de guerra, talvez estivesse a ir no sentido de tudo aquilo de que queria fugir. Para onde ia? Subitamente, a vida parecia-lhe uma encruzilhada de becos”.
“A Adelaide pensou que aquele papel faria a viagem contrária à que ela própria tinha feito. Talvez a tia pousasse o envelope sobre o balcão da loja, talvez o pousasse sobre a mesa da cozinha, haveria de fazê-lo certamente. Deu consigo a sentir falta do balcão da loja e da mesa da cozinha, onde pousou os cotovelos tantas vezes. Ali, numa rua francesa, feita de cores diferentes e de materiais diferentes, pareceu-lhe estranho que ainda existisse esse lugar de cigarras no verão, inconcreto como o dia anterior, como o mês anterior, o ano anterior, a infância. Mas, sim, aquele papel haveria de chegar a esse tempo, aquelas palavras haveriam de chegar ao que foi e, no seu íntimo, continuava a ser”.
Portugal pode estar em recessão, sua literatura não: a cada obra que leio de José Luís Peixoto mais me convenço de que ele é o grande autor surgido neste novo século, ao menos no âmbito da nossa língua. Se ainda restasse alguma dúvida, teria sido dissipada por seu último romance, Livro (Portugal, 2010), com o qual fechou sua primeira e gloriosa década de carreira, abordando  o mais clássico e batido dos temas: o desencontro entre um jovem casal enamorado. Mais ainda, o desencontro com a própria terra natal.
Ilídio e Adelaide são jovens de uma cidadezinha nos cafundós lusitanos. Apaixonam-se. Por conta disso, a tia dela, Lubélia, que não aprova o namoro e é amarga e ressentida, a envia à força para a França (ainda na época de Salazar, com caravanas constantes e clandestinas). Ilídio emigra para encontrá-la (a narrativa das duas viagens é extraordinária nessa prosa tocada pela “nitidez de todas as arestas”), acompanhado do amigo Cosme, que foge do recrutamento militar.

Residindo no mesmo país, suas vidas permanecem paralelas (um pouco por conta das artimanhas de Lubélia, um pouco por conta do destino, um tanto pelo próprio temperamento de ambos). Ela chega a casar-se com outro português, Constantino,  que recebe da mesada da família e alimenta sonhos esquerdistas (fomentados pelos acontecimentos revolucionários dos anos 60).
De Ilídio, Adelaide guarda o mais insólito dos talismãs (já que nenhum dos dois é o que se pode chamar de letrado): um livro, que nunca saberemos qual é. Entretanto, o filho dela chamar-se-á Livro. E português nascido na França, voltará ao país da mãe, para viver (com ela, que terá a grande chance de se acertar com Ilídio) na aldeia, após atropelar sem querer (e fugir) uma conterrânea incauta nas ruas de Paris. E embora não saibamos qual é o livro-tesouro amoroso de Adelaide, teremos diante dos olhos o livro que Livro escreve e que talvez seja o livro que estamos lendo…
Apesar do jogo metalingüístico e da pós-modernidade que vai se impondo em Livro, mais uma vez Peixoto surpreende com seu raro olhar sobre o universo camponês ou pelo menos a mentalidade “camponesa” que permaneceu latente até mesmo em portugueses citadinos, embora cada vez mais em refluxo, evidentemente. Não há nada mais bonito do que o estilo do autor de Cemitério de pianos e Uma casa na escuridão, e ele se mostra especialmente inspirado e certeiro na evocação de uma atmosfera que pareceria, a princípio, para um autor tão jovem (nasceu em 1974) e de aparência e  atitude tão “modernosa”, remota e arcaica.
Com Livro, aliás, matei a charada do feitiço que seus textos provocam em mim: sempre me senti meio agente duplo, pois gosto tanto de autores onde o mundo material aparecia em sua plenitude, e a narrativa é fortemente ancorada na “realidade factual”, como de autores onde a insubstancialidade do mundo é a tônica, e somos levados de roldão numa tabula rasa do que seria o real e o concreto.
As vidas de Ilídio e Adelaide vão ficando cada vez mais frágeis e fantasmáticas na França, e Livro é um personagem confrontado com a própria condição insubstancial. Ele não pode ser como a velha Lubélia, sobre a qual lemos: “… acreditava que era por isso que, com quase trinta anos, quando já tinha desistido de casar, aceitou trabalho naquela vila. Foi tomar conta de uma velha sozinha e amarga. Nunca gostou da velha, mas herdou-lhe a loja e encontrou nela um exemplo da própria amargura (…) Por costume, amaldiçoava cada grão daquela terra, mas era ali que pertencia. Sentia paz quando fechava os olhos e, para lá da inveja, desprezo e ódio que alimentava por um grupo vasto de pessoas, sentia uma certa comunhão com aquele lugar. Sabia o nome de todas as ruas, becos e travessas. Sabia de cor o nome completo de todas as pessoas adultas da vila”.
Todavia, num incrível feito, o mundo material avulta mesmo assim em Livro, daí as cenas inesquecíveis do menino (Ilídio) que é abandonado pela mãe e fica à sua espera interminavelmente à beira de uma fonte contaminada, até desistir, e procurar aquele que será seu pai simbólico (Josué); as já referidas cenas de emigrantes em jornada clandestina para a França; a casa de um dos companheiros de Ilídio, com um irmão inválido física e mentalmente, e uma coorte de pombas esvoaçando em meio à escuridão e ao cheiro da pobreza, quase da miserabilidade. E também a solidão de Adelaide na França, trabalhando como faxineira numa casa de família e também numa biblioteca (onde conhece Constantino e tem início uma insólita forma de paquera), e mais ainda como mulher casada, não compreendendo e não sendo compreendida pelos amigos engajados e “inteligentes” do marido.
E no final o mundo rural português, apesar de tão entranhado nas personagens (até naquele que ali não nasceu) é atropelado pela modernidade  pós-industrial como uma velha incauta na rua.
Acho que ninguém acertou mais na mosca do que o escritor angolano José Eduardo Agualusa quando afirmou que o universo de José Luís Peixoto era luminoso e ao mesmo tempo tristíssimo, “ou seja, absolutamente português”: “O Josué vinha a teimar consigo próprio quando entrou na Rua de São João. Setembro podia acabar, o telhado do jazigo estava quase pronto e o Josué tinha pressa de envelhecer um pouco mais. Dentro de poucos anos, talvez se pudesse sentar no terreiro, ao lado dos homens que não esperavam por nada”.

12/10/2011

O NADA E A IMAGEM: “O Livro das Ilusões”, de Paul Auster


VEJA TAMBÉM NO BLOG:
http://armonte.wordpress.com/2013/03/03/a-austeridade-do-acaso-quatro-resenhas-sobre-paul-auster/
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(resenha comemorativa dos meus dez anos de coluna em “A Tribuna” de Santos, publicada em 08 de abril de 2003)
Para comemorar os dez anos desta coluna nada melhor do que um novo livro do autor comentado em seu artigo inaugural. Abril de 1993: o assunto era A música do acaso e afirmava-se ali  ser Paul Auster o escritor norte-americano mais interessante surgido nos últimos anos.
Dez anos depois, é possível manter a mesma opinião? E O livro das ilusões [The book of illusions, 2002, tradução de Beth Vieira, Companhia das Letras] traz alguma novidade ou contribuição para a avaliação da obra austeriana?
A resposta para a primeira pergunta é inequivocamente afirmativa. Auster continuou a apresentar um trabalho instigante e  essencial, basta lembrar de textos excepcionais como Leviatã, Timbuktu, o conto que deu origem ao filme Smoke.
Quanto à segunda questão, que se refere diretamente ao novo romance, esta artigo tentará ser a resposta. O livro das ilusões é narrado por David Zimmer, um professor de literatura de Vermont que, após a morte da esposa e dos dois filhos num acidente de avião (esse tipo de tragédia é recorrente em Auster), entra em um processo destrutivo até escrever um livro sobre as comédias mudas estreladas por Hector Mann, ator que desaparecera em 1929. Algum tempo depois, Zimmer recebe notícias de que ele estaria vivo, numa fazenda do Novo México. Alma Grund, filha de um antigo colaborador de Mann, procura Zimmer: é urgente sua presença na fazenda, o ex-cômico está para morrer e sua esposa pretende queimar os filmes que ele realizara em segredo nos seus “anos obscuros”.
Na viagem, Alma (que está escrevendo uma biografia de Mann) relata a Zimmer o assassinato que fez com que o ator resolvesse desaparecer de Hollywood e a seqüência de acasos que o levaram à fazenda e aos filmes experimentais no Novo México, isto é,  à configuração final do seu destino, uma sobrevida com relação à sua fama e legendas cinematográficas, e assim como Chateaubriand , autor de Memórias do Além-túmulo, que o narrador está traduzindo quando Alma aparece em sua vida (e que fornece a epígrafe reveladora de O livro das ilusões: “O homem não tem uma única e mesma vida. Tem várias, arranjadas de ponta a ponta, daí sua infelicidade”), sobreviveu a si mesmo, custando para morrer.
O grande tema de O livro das ilusões é o nada. Todos os incidentes melodramáticos da vida de Hector Mann (que parecem tirados de um filme B hollywoodiano), toda a sua vida na fazenda dedicada a produzir obras que ninguém verá, remetem ao nada. Sem falar na tragédia familiar de que é vítima, o romance entre Zimmer e Alma está fadado ao nada. E o que dizer de um livro que se escreve a respeito de imagens, isto é, sobre filmes mudos, que quase ninguém viu ou conhece:? Fantasmagoria.

A mãe de Alma, atriz do único filme de Hector Mann realizado na fazenda e que Zimmer consegue assistir, interpreta uma musa fantasma e ela mesma é um fantasma em celulóide. A trajetória de todos esses personagens perdidos ao longo do século XX nos aprisiona nesse labirinto de fantasmagoria, feito de ilusões, cujo produto final é o nada e o cinema (que Auster experimentou nos anos 90 até como diretor, no belo O mistério de Lulu) é a sua grande metáfora.
Portanto, o “mais interessante escritor norte-americano surgido nos últimos anos” continua com mão poderosa no seu caminho sombrio. As páginas que descrevem cenas dos filmes mudos de Hector Mann e aquelas em que se relata minuciosamente o conteúdo do filme estrelado pela mãe de Aloma estão entre as melhores escritas por ele e entre as melhores da literatura contemporânea. Todavia, embora O livro das ilusões comprove sua presença garantida no pequeno grupo que ainda nos proporciona alta ficção, há decerto uma angústia pessoal de identificação na maneira como Auster descreve o status de Hector Mann como cômico do cinema mudo: “Hector não acrescentou nada de novo ao gênero”, sendo apenas ”um retardatário digno de nota”. Será que, no futuro, descreverão dessa forma Paul Auster e sua obra, na qual o real tornou-se fantasmagórico e a arte tornou-se referência a formas que já foram vivas e não são mais? Daqui a dez anos talvez possamos responder a essa questão.

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