De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.
A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.
Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem
Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
–Meu tempo é quando. (Poética I, 1950)
***
Amo na vida as coisas que têm sumo
E oferecem matéria onde pegar
Amo a noite, amo a música, amo o mar
Amo a mulher, amo o álcool e amo o fumo. (primeiro quarteto de Soneto ao caju)
O meu Vinicius de Moraes (cujo centenário comemora-se agora em outubro, dia 19) não é aquele da primeira fase, muito enfronhado na linha católico-angustiada que atravessa nossa literatura modernista, nem o letrista de anos gloriosos da MPB, que mandou seu catolicismo para a tonga da mironga do kabuletê.
O meu Vinicius de Moraes é um pouco mais restrito: é o de Orfeu da Conceição (1954) e sobretudo o de LIVRO DE SONETOS (1967), que comento aqui numa edição [aliás, uma reimpressão, de 2003] da Companhia das Letras, na qual aos 65 poemas reunidos originalmente (em vida, pelo próprio autor), foram acrescentados mais 9 inéditos. Dos 65, o primeiro soneto (Ária para assovio) traz 1936 como data; o último (Soneto de Maio), de 1967.
Vejamos do que tratam ambos, e do tom que o eu lírico assume em cada um deles.
Ária para assovio: “Inelutavelmente tu/Rosa sobre o passeio/Branca! e a melancolia/Na tarde do seio.// As cássias escorrem/Seu ouro a teus pés/ Conheço o soneto/Porém tu quem és?// O madrigal se escreve/ Se é do teu costume/Deixa que eu te leve.// (Sê…mínima e breve/A música do perfume/ não guarda ciúme.)” Malgrado a fatura impecável dos versos, é um eu lírico um tanto datado, invertebrado no seu vocabulário com um pé no simbolismo, no tom formalista que beira a cafonice, onde “a música do perfume” parece meio abstrata e chavão. Mas, como em qualquer soneto de Vinicius, com raras exceções, há sempre um trecho que se salva: “Conheço o soneto/Porém tu quem és?”
Soneto de maio: “Suavemente Maio se insinua/ Por entre os véus de Abril, o mês cruel/ E lava o ar de anil, alegra a rua/ Alumbra os astros e aproxima o céu.// Até a lua, a casta e branca lua/Esquecido o pudor, baixa o dossel/E em seu leito de plumas fica nua/ A destilar seu luminoso mel.// Raia a aurora tão tímida e tão frágil/Que através do seu corpo transparente/ Dir-se-ia poder ver o rosto//Carregado de inveja e de presságio/Dos irmãos Junho e Julho, friamente/ Preparando as catástrofes de Agosto…”
Pode-se afirmar que aí se reúnem as qualidades (a maestria da forma, na maleabilidade com que ele lida com o verso ora mais longo, ora mais curto) com seus defeitos, suas características mais datadas (a casta e branca lua, com seu pudor esquecido; o corpo transparente da aurora), que já se faziam gritantes nos anos 1960.
Portanto, é no meio da travessia 1936-1967 que teremos de encontrar um Vinicius menos convencional, menos atado a formulações estereotipadas, e que se nunca se distinguiu pela profundidade da visão lírica pessoal, faz da forma-soneto uma superação das suas limitações, aproximando-se dos grandes nomes coetâneos (João Cabral, Jorge de Lima, Drummond, Murilo Mendes, Cecília Meireles).
Temos inúmeros exemplos do “cherchez la femme” que tanto ocupou o poeta, já no Soneto da devoção (1937), a mulher que se arremessa, fria e lúbrica, nos seus braços, é tanto “flor de melancolia” (ai, senhor!), como também (e aí começa o diferencial), aquela que diz “nomes feios”, e que é talvez uma “cadela”: “Essa mulher que a cada amor proclama/ A miséria e a grandeza de quem ama/ E guarda a marca dos meus dentes nela.// Essa mulher é um mundo!—uma cadela/ Talvez…—mas na moldura de uma cama/Nunca mulher nenhuma foi tão bela!”
Pode-se tomar como um momento-chave, paradigmático, desse topos tão caro a Vinicius, e que o conecta com toda uma tradição clássica, mesmo que ele ouse contornos mais sensuais, terrenos e prosaicos, chegando a versos de extrema beleza: “Meu coração é um vago de acalanto/Berçando versos de saudade imensa” (Soneto de contrição), mesmo em sonetos mais irregulares.
Essa presença feminina avulta até nos Sonetos de meditação: “Uma mulher me ama. Se eu me fosse/ Talvez ela sentisse o desalento/ Da árvores jovem que não ouve o vento/ Inconstante e fiel, tardio e doce// Na sua tarde em flor. Uma mulher/ Me ama como a chama ama o silêncio/ E o seu amor vitorioso vence/ O desejo da morte que me quer.// Uma mulher me ama. Quando o escuro/ Do crepúsculo mórbido e maduro/ Me leva a face ao gênio dos espelhos// E eu, moço, busco em vão meus olhos velhos/ Vindo de ver a morte em mim divina:/ Uma mulher me ama e me ilumina.” (note-se também uma estratégia típica do poeta: a repetição; em outros, uma sequência verbal produz um efeito expressivo vigoroso; sem contar o uso da conjunção “e”).
Um ponto alto, a meu ver, é Soneto da mulher ao sol: “Uma mulher ao sol—eis todo o meu desejo/Vinda do sal do mar, nua, os braços em cruz/ A flor dos lábios entreaberta para o beijo/A pele a fulgurar todo o pólen da luz.//Uma linda mulher com os seios em repouso/ Nua e quente ao sol—eis tudo o eu preciso/O ventre terso, o pêlo úmido, e um sorriso/ À flor dos lábios entreabertos para o gozo.// Uma mulher ao sol sobre quem me debruce/Em quem beba e a quem morda e com quem me lamente/ E que ao se submeter se enfureça e soluce//E tente me expelir, e ao me sentir ausente/Me busque novamente—e se deixa dormir/ Quando, pacificado, eu tiver de partir…” (1956)
A exaltação da fugidia e contraditória, mas eternamente presente figura feminina se associa a uma meditação sobre o Amor, de uma forma mais geral, na tradição petrarquiana ou camoniana, muito entretecida por antíteses: “De repente do riso fez-se o pranto/Silencioso e branco como a bruma/ E das bocas unidas fez-se a espuma/ E das mãos espalmadas fez-se o espanto./ De repente da calma fez-se o vento/Que dos olhos desfez a última chama/ E da paixão fez-se o pressentimento/ E do momento imóvel fez-se o drama.// De repente, não mais que de repente/ Fez-se de triste o que se fez amante/ E de sozinho o que se fez contente.// Fez-se do amigo próximo o distante/ Fez-se da vida uma aventura errante/ De repente, não mais que de repente.” (1938). O Soneto da Separação talvez seja o mais famoso entre os sonetos de Vinicius, junto com Soneto da Fidelidade: “De tudo, ao meu amor serei atento/ Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto/ Que mesmo em face do maior encanto/ Dele se encante mais meu pensamento.// Quero vivê-lo em cada vão momento/ E em seu louvor hei de espalhar meu canto/ E rir meu riso e derramar meu pranto/ Ao seu pesar ou seu contentamento.// E assim, quando mais tarde me procure/ Quem sabe a morte, angústia de quem vive/ Quem sabe a solidão, fim de quem ama// Eu possa me dizer do amor (que tive):/ Que não seja imortal, posto que é chama/ Mas que seja infinito enquanto dure.” (1939).[1]
Como em todos os nossos poetas modernistas, encontramos sonetos para artistas e escritores, sobretudo amigos e contemporâneos (Octavio de Faria, Portinari, Rubem Braga, Lasar Segall[2], Graciliano Ramos[3] , Pablo Neruda, Rafael Alberti, mas também para Katharine Mansfield, Baudelaire, Eisenstein—este último merece um tríptico, e no último temos este lindo trecho: “(…) O cinema/ É o que não se vê, é o que não é/ Mas resulta: a indizível dimensão”).
Temos os sonetos de lugares, como referência espacial tão somente (o Soneto de Oxford, não especialmente memorável; o Soneto de Londres, em parte vazado no estilo antitético característico: “(…) acesa/ A noite, em brancas trevas o caminho// Da vida, e a solidão do burburinho…”); ainda o Soneto de Montevidéu; ou a partir da rememoração de circunstâncias vividas: Pôr-do-sol em Itatiaia[4], Soneto de Florença (“Torres, cúpulas, claustros: renascença// Das coisas que passaram mas que urgem…”).
E as estações, o carnaval, o dia de domingo, os quatro elementos, com altos e baixos, mais altos que baixos.
Para encerrar, um dos momentos mais altos, quase cinquentenário:
Um gato vivo é qualquer coisa linda
Nada existe com mais serenidade
Mesmo parado ele caminha ainda
As selvas sinuosas da saudade
De ter sido feroz. À sua vinda
Altas correntes de eletricidade
Rompem do ar as lâminas em cinza
Numa silenciosa tempestade.
Por isso ele está sempre a rir de cada
Um de nós, e ao morrer perde o veludo
Fica torpe, ao avesso, opaco, torto
Acaba, é o antigato: porque nada
Nada parece mais com o fim de tudo
Que um gato morto. (Soneto do gato morto, novembro de 1963).
Mesmo sem mitificar ou mistificar Vinicius de Moraes como figura humana ou poeta, como não ter a maior consideração por ele depois de um tal soneto?
(escrito especialmente para o blog, outubro de 2013)
[1] Lindo também é o Soneto da espera: “Aguardando-te,
amor, revejo os dias/Da minha infância já distante, quando/ Eu ficava,
como hoje, te esperando/ Mas sem saber ao certo se virias.// E é bom
ficar assim, quieto, lembrando/ Ao longo de milhares de poesias/ Que te
estás sempre e sempre renovando/ Para me dar maiores alegrias.// Dentro
em pouco entrarás, ardente e loura/Como uma jovem chama precursora/ Do
fogo a se atear entre nós dois// E da cama, onde em ti me dessedento,/
Tu te erguerás como o pressentimento/ De uma mulher morena a vir
depois.” (1963)
[2] “De
inescrutavelmente no que pintas/Como num amplo espaço de agonias/
Imarcescível música de tintas/ A arder na lucidez das coisas frias” (1943).
[3] “(…) sua máscara austerizou-se/Numa preclara decisão eterna” (de Máscara mortuária de Graciliano Ramos)
[4] Do qual transcrevo os tercetos: “Calmo, subjacente/ O vale infinito/ A estender-se múltiplo//Inventando espaços/Dilatando a angústia/Criando o silêncio…”