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Nova publicação em MONTE DE LEITURAS: blog do Alfredo Monte

OS VALORES DA TRIBO: Edith Wharton, Scorsese e o cetim preto

by alfredomonte
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(resenha publicada originalmente em A TRIBUNA de Santos, em primeiro de fevereiro de 1994)
“Pobre Ellen... o que se pode esperar de uma moça autorizada a usar cetim preto em seu baile de debutante?”
Era de se imaginar Martin Scorsese lidando com tais preocupações? Ou com um triângulo amoroso da alta (mas jeca) sociedade novaiorquina dos anos 1870? No entanto, foi ele quem se arriscou a adaptar cinematograficamente A Era da Inocência (The age of innocence, 1920, que comento na tradução de Sieni Maria Campos), de Edith Wharton. O filme ganhou o título nacional de A época da inocência.
Scorsese, no fundo, não está tão longe assim da sua temática habitual, que mostra códigos de sobrevivência e adaptação (ou falta de). Em suas obras-primas supremas, O touro indomável & Os bons companheiros, tais códigos eram revelados na periferia, no submundo, e através da extrema violência. A necessidade imediata e grosseira da sobrevivência ou as demonstrações fisiológicas da violência não aparecem em A Era da Inocência. Vemos, contudo, os valores da tribo tecendo impiedosamente o casulo em torno do protagonista, Newland (vivido no filme pelo até agora camaleônico Daniel Day Lewis), cuja postura quanto à etiqueta e vestuário é tão meticulosa quanto a de um novaiorquino posterior, Patrick Bateman, o “psicopata americano” criado por Bret Easton Ellis.
Bateman tem de se movimentar no mundo do politicamente correto. Os ricos de Edith Wharton podem se manter na “inocência”, podem mostrar-se politicamente incorretos porque os privilégios e códigos (provincianos que fossem) jamais eram discutidos, pareciam “fenômenos naturais”. Com toda a sua vida esquizofrênica, Newland fica ao ponto de surtar, interferindo na engrenagem social, ao apaixonar-se pela já referida Ellen, a do cetim preto, prima de May, sua noiva (e depois, esposa). Parece trivial. Não é. Parece Proust, pelo tratamento detalhista da etiqueta social. Mas Wharton  tem um outro belo texto, Ethan Frome, que se passa num meio completamente diferente, quase primitivo de tão agrário, e no entanto com problemas similares de renúncias e asfixias morais.
Quando nos mergulha no dilema de Newland, descortina criticamente a mentalidade que sustenta a preocupação com o cetim preto. Estamos longe de Jezebel, que girava em torno do uso de um vestido vermelho. No melodrama de William Wyler (com Bette Davis) não se chegava ao cerne das coisas, o vestido era um pretexto para situações carameladas e atitudes descabeladas. Nas intrigas em torno do cetim preto há sangue derramado (simbolicamente), e chegamos ao cerne das coisas.
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Edith Wharton criou um grande personagem masculino, porém as duas pontas femininas do triângulo são muito mais desafiadoras, principalmente numa transposição como é o caso da versão cinematográfica, e é ótimo terem sido entregues às mais-que-competentes Michelle Pfeiffer e Winona Ryder. Carisma e densidade incontestes de La Pfeiffer, mas Winona é uma escolha particularmente feliz (após ter brilhado em Drácula, digam o que quiserem), pois May é dificílima. Tem uma falsamente passiva participação no desenrolar dos acontecimentos e é quem consegue, subterraneamente, tecer o casulo que envolve e paralisa Newland, consumando a expulsão de Ellen. E sempre “inocente”. O termo vilã não lhe assenta, porém é uma admirável conspiradora e estrategista (e não estaria nada deslocada no mundo de Henry James). Todavia, é seu pai, mr. Welland, quem talvez melhor caracterize a “inocência” da elite novaiorquina de então, pedindo para ser poupado de tudo o que a existência tem de desagradável.
O cetim preto, então, é um motivo tão forte para a exclusão (quando não aniquilamento) de alguém, dentro de tão cerrado código, quanto uma delação ou outros motivos já explorados pelo universo scorsesariano. São signos diferentes que expressam uma mesma guerra social.
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