“Coisas que devem ser curtas. Linhas para uma costura urgente. Os cabelos das serviçais. Vozes de donzelas. Apoios de lamparinas.” (do Makurano Sôshi-O Livro do Travesseiro)
“Mas o aspecto mais essencial e fundamental da cultura é o estudo da literatura, uma vez que essa é uma educação sobre como imaginar e entender situações humanas.” (de A soberania do Bem)
NOTA- Embora tenha havido novas e importantes versões para várias obras, na lista abaixo figuram apenas traduções de textos inéditos no Brasil
[1] . Uma lista de destaques, por definição, deveria ser mais curta do que longa (mas, e quando o leitor é donjuanesco?). Com relação ao texto publicado em “A Tribuna” houve o acréscimo de dois títulos.
(uma versão da resenha abaixo foi publicada originalmente em A TRIBUNA, em 24 de junho de 2013)
A tradução do ano- O Livro do Travesseiro, de Sei Shônagon (Ed. 34)- Nenhum lançamento supera o esforço coletivo (de Geny Wakisaba, Junko Ota, Lica Hashimoto, Luiza Nana Yoshida e Madalena Hashimoto Cordaro) para trazer ao leitor brasileiro um clássico japonês finalizado no ano 1001, mistura de anedotário, manual de etiqueta e mundanismo, enciclopédia e guia de sabedoria;
-
Reflexões do Gato Murr, de E.T.A. Hoffmann (Estação Liberdade)- Maria Aparecida Barbosa traduziu esse primor de irreverência e criatividade da literatura alemã, escrito entre 1819 e 1822: a biografia de um gato machadiano
avant la lettre[2] e seus ziguezagues editoriais;
- O Capitão Mihális, de Nikos Kazantzakis (Grua)-versão direta do original (de Silvia Ricardino) dessa obra-prima de 1953, em que a convivência tensa entre gregos e turcos e a mistura entre religião e política, que sempre permearam o universo kazantzakiano atingem proporções grandiosas;
-Acontecimentos na Irrealidade Imediata (1936), de Max Blecher (CosacNaify)- Graças a Fernando Klabin, o leitor brasileiro tem acesso ao desconcertante e surreal mundo do precoce romeno, morto aos 28 anos, no qual, por exemplo, o narrador insiste em que uma echarpe é um buquê de dálias;
-A Caixa, de Günter Grass (Record)- Texto recente (2008) de um dos maiores autores vivos, e um enigma: como Grass conseguiu escrever poucas páginas (de uma história familiar) que parecem tão caleidoscópicas (em versão de Marcelo Backes) quanto as das imensas e gloriosas obras anteriores (como, por exemplo, Anos de Cão, que chega ao meio-século em 2013)?;
-Murphy, de Samuel Beckett (CosacNaify)- Fábio de Souza Andrade traduziu o romance de estreia (1938) de um dos gênios da literatura do século passado. A primeira frase já diz tudo: “O sol brilhava, sem alternativa, sobre o nada de novo” (serei perverso por achar delicioso o embrenhar-se nesse universo de escombros?);
-Contos Reunidos de Vladimir Nabokov (Alfaguara)- Apesar de uma pequena parte da contística nabokoviana já ter sido traduzida no Brasil, como não admirar o tour-de-force de José Rubem Siqueira ao enfrentar as armadilhas do estilo do incomparável autor russo em 68 textos (quem sabe a Alfaguara não se anima a desafiar alguém, quem sabe o grande José Luiz Passos, a fazer o mesmo com os contos de Henry James?)?;
-O Brinquedo Raivoso (1926), de Roberto Arlt (Iluminuras)- Romance seminal para a literatura argentina, El juguete rabioso relata a formação rocambolesca e irrisória de um contraventor, incorporando gírias e dialetos urbanos, muito bem recriados para a nossa língua por Maria Paula Gurgel Ribeiro. Um Alcântara Machado que tivesse um sopro dostoievskiano dentro de si;
-O Lugar Sem Limites (1965), de José Donoso (CosacNaify)- A versão de Heloisa Jahn do curto e extraordinário romance do autor chileno, cujos protagonistas são um travesti, dono de um bordel, e um latifundiário, num povoado que aos poucos vai minguando; o título é uma citação de versos de Marlowe que se referem ao inferno, e é isso aí;
-A Paz Dura Pouco, de Chinua Achebe (Companhia das Letras)- Morreu este ano o nigeriano que nos deixou romances magníficos, como este, de 1960, sobre os conflitos de geração e a corrupção no funcionalismo público. Tradução de Rubens Figueiredo para No longer at ease;
-O Sermão Sobre a Queda de Roma (2012), de Jérôme Ferrari (Ed.34)- Já é um dos romances do século. Brilhantemente traduzido por Samuel Titan Jr., o premiado com o Goncourt 2012 narra várias quedas: civilizacionais, coloniais, existenciais, ao enfocar os membros de uma família com raízes num vilarejo da Córsega;
--O Amor de Uma Boa Mulher, de Alice Munro (Companhia das Letras)- Esta coletânea de 1998, com oito histórias magistrais, mostra ao leitor brasileiro (na versão de Jorio Dauster) como foi merecido o Nobel concedido este ano à canadense, mestre no gênero;
-Mudança (2009), de Mo Yan (CosacNaify)- E por falar em Nobel, finalmente um título traduzido no Brasil (por Amilton Reis) do chinês premiado em 2012. Uma ardilosa obra-prima da narrativa autobiográfica;
-As Agruras do Verdadeiro Tira, de Roberto Bolaño (Companhia das Letras)- Em 2013, a morte do autor chileno completou 10 anos. Esse livro póstumo, ainda em esboço, mostra a força e a fragilidade do universo bolañesco (em tradução de Eduardo Brandão para Los sinsabores del verdadero policía);
- O Livro de Henrique, de Hilary Mantel (Record)- Heloísa Mourão traduziu o impressionante vencedor do Man Booker 2012, que narra as relações entre Cromwell, Henrique VIII e Ana Bolena, provando ser rematada tolice o desdém pelo “romance histórico” (tido como um subgênero). Agora: quem teve a ideia de colocar tão chocho título nacional para Bring up the bodies?;
-Novembro de 63 (2012), de Stephen King (Suma das Letras)- Provavelmente a maior obra do mestre do terror (na versão de Beatriz Medina), uma viagem no tempo, em todos os sentidos, mergulhando-nos na época em que John F. Kennedy foi assassinado;
-A Morte do Inimigo, de Hans Keilson (Companhia das Letras)- publicado em 1959, esse relato impactante do autor alemão (que viveu boa aprte da sua existência na Holanda) abdica da particularidade do Holocausto (o massacre do povo judeu) para compor uma ampla alegoria da supressão de um bode expiatório por parte de um regime.
--
Tempos de Reflexão: de 1990 a 2008, de Nadine Gordimer (Biblioteca Azul)- A morte recente de Nelson Mandela dá um tempero a mais para o cardápio variado e incisivo desses ensaios (políticos, literários, zeitgeistianos) reunidos pela notável escritora sul-africana em
Telling times e traduzidos por Rosaura Eichenberg
[3].
Hors concours:
O Tempo Passa (1927), de Virginia Woolf (Autêntica)-Tomaz Tadeu traduziu essa versão bastante ampliada da segunda parte de
Ao Farol[4], publicada quando o romance estava sendo escrito (numa revista francesa), com marcantes diferenças (fora a extensão) com o texto do romance. Em comum, a beleza indizível. De bônus, uma edição maravilhosa;
e
A Soberania do Bem (1971), de Iris Murdoch (Ed. UNESP)- Nos três importantíssimos ensaios reunidos a partir de palestras dos anos 1960, traduzidos por Julián Fuks, uma das mais soberbas romancistas do século XX (seu O unicórnio também chega ao cinquentenário neste ano que finda) brilha como pensadora, exigindo da filosofia e da literatura uma imaginação moral, de forma a, após proporcionar uma genealogia de atitudes filosóficas diante da realidade, ousadamente propor o Bem como a meta do ser humano.
TRECHOS SELECIONADOS
“As damas que servem no Palácio Imperial, quando se encontram por ocasião da volta a seus lares, cada qual começa a louvar os seus senhores, e para o proprietário da residência onde se encontram, é deveras interessante ouvir o que relatam entre si sobre os outros que lá servem, ou sobre as aparências dos nobres. É desejável que tal residência seja ampla e bela, e que todos recebam suas próprias acomodações, a começar pelos seus parentes, é claro, mas também para os mais íntimos e especialmente para as damas que servem no Palácio Imperial.
Nessas ocasiões, elas se reuniriam num aposento e ficariam a contar histórias, a comentar sobre os poemas recitados por alguém, e até apreciariam juntas uma carta que alguma dama recebera e trazia consigo, ajudando a escrever a resposta, ou, no caso de uma visita de cavalheiro com quem tivessem alguma intimidade, adornariam bem o aposento para recebê-lo. Mesmo que ele não pudesse ir embora por causa da chuva, tratariam de entretê-lo e, quando chegasse a hora de uma das damas retornar ao Palácio Imperial, cuidariam de seus preparativos e a acompanhariam até que fosse embora, toda satisfeita.
Seria excessiva a minha curiosidade de querer saber como são as atitudes cotidianas dos nobres?”
(trecho de O livro do travesseiro)
“Natureza! Oh, natureza! Como podem algumas gotas saboreadas pelo gato desavisado em livre e desenfreada arbitrariedade despertar rebelião contra o princípio de harmonia plantado no peito com amor, segundo o qual é preciso estar convencido de que o mundo, com todos os peixes assados, ossos de galinha e mingais, é bom, sendo o gato em si o que há de melhor, pois os amigos só existem por causa dele e em função dele? Mas, um gato filósofo reconhecê-lo-ia, há uma grande sabedoria nisso tudo—a debilidade implacável parece ser uma compensação provocada na condição física do ser, uma necessária reação que se justifica assim na concepção do universo eterno!
Jovens gatos, consolem-se, pois, com as palavras sábias e experientes deste seu ilustre e erudito confrade.
Basta dizer que passei a levar uma vida folgazã de malandro vagando sobre os telhados em companhia de Muzius e outros valentões, leais e joviais gatos brancos, pardos e malhados. Chego a um acontecimento importante em minha vida, que teve consequências bastante sérias na minha biografia...”
(trecho de Reflexões do Gato Murr)
“Entre os dois exércitos cristãos, os soldados turcos também enterravam seus mortos, cuidavam dos feridos, relembravam em silêncio, olhando as fogueiras acesas, o Oriente distante em que estavam suas mulheres e filhos, pensavam em quem lavraria a terra, quem escavaria a videira, quem levaria pão para casa...
Quando o céu começou a iluminar-se, turcos e cristãos levantaram-se, para retomar a jornada. Dois dervixes, um com um tambor e outro com uma flauta de bisel, começaram a percorrer a tropa para estimular os soldados. Os monges também retomaram seus postos, o abade tinha uma atadura na cabeça, estraçalhada por golpes de espada, as feridas não se atenuavam nem o sangue estancava, sua barba estava completamente vermelha e pingava. Antes do amanhecer, porém, já estava ajoelhado diante de sua seteira, vasculhando os muçulmanos com olhos de águia, e sempre que via uma cabeça erguer-se, atirava bem na testa. Este é um trabalho sórdido, matar homens, mesmo sendo muçulmanos infiéis, pensava ele, mas nós não temos culpa: liberte-nos, meu Deus, para sossegarmos.
Lá no alto do desfiladeiro, o Capitão Polixínguis fazia um giro para dar conselhos aos companheiros. Todos já estavam por terra e entricheirados atrás dos rochedos... e o Capitão Polixínguis, com pudor de curvar-se, caminhava ereto, indo de um em um.
__ Abaixe-se, Capitão, para não ser atingido por nenhuma bala!—gritavam-lhe os combatentes.
As balas já tinham começado a sibilar sobre suas cabeças. Mas o Capitão Polixínguis ria:
__ Bem que eu queria, rapazes, bem que eu queria, pois também tenho medo. Deus é testemunha, mas fico encabulado. Você não quis ser Capitão, Polixínguis? Pois então, bem feito!
__ Deixe disso, Capitão, acho que você carrega uma lasca do lenho sagrado, por isso não tem medo—sibilou um magricela desengonçado e invejoso.
Isso fez o Capitão Polixínguis zangar-se e dizer:
__ Fique sabendo que o lenho sagrado, Nikolis, é o espírito do homem, não conheço outro lenho sagrado!”
(trecho de O Capitão Mihális)
“Eu fitava de olhos abertos tudo o que havia ao meu redor, mas os objetos perdiam seu sentido comum: uma nova existência os animava.
Como se tivessem sido subitamente desempacotados de papéis finos e transparentes em que se encontravam envoltos até então, seu aspecto se tornava inefavelmente novo. Pareciam destinados a uma utilização nova, superior ou fantástica, que eu em vão tentaria encontrar.
Mas não era só isso: os objetos se deixavam tomar por um verdadeiro frenesi de liberdade. Tornavam-se independentes uns dos outros, uma independência que não significava simples isolamento, mas exaltação extática [...].
O que era mais comum e mais conhecido naqueles objetos me perturbava ainda mais. O costume de vê-los tantas vezes provavelmente fizera sua pele exterior ficar desgastada, por isso às vezes eles surgiam diante de mim esfolados e coberto de sangue: vivos, indizivelmente vivos.
O momento supremo da crise se consumava numa flutuação agradável e dolorosa, que não era deste mundo. Ao menor ruído de passos, o quarto rapidamente voltava ao seu aspecto inicial. Ocorria então entre as suas paredes uma redução instantânea, uma diminuição extremamente pequena de sua exaltação, quase imperceptível; isso me convencia de que uma finíssima crosta separava a certeza em que eu vivia do mundo das incertezas [...].
O quarto conservava vagamente a lembrança da catástrofe, como o cheiro de enxofre que paira no local de uma explosão…”
“A velha Marie fotografou nossa Casa de Tijolos por dentro e por fora com sua Agfa-Especial, para que papai pudesse ver quem vivera por ali no passado e pintara suas coisas no sótão, onde ele ficava sentado agora. Era alguém que mais tarde inclusive ficou famoso, e isso com uma fotografia especial. Era um pintor de paisagens marítimas. Pintava quadros conhecidos como marinhas. Navios de três mastros de velas enfunadas, mas também vapores transatlânticos. Mais tarde quase sempre navios de guerra. Cruzadores e outros do tipo, quando a Primeira Guerra Mundial começou, e nossa frota e a dos ingleses lutou e se afundou mutuamente no Mar do Norte. Eram quadros da batalha do Doggerbank e da batalha de Skagerrak, nas quais morreu muita gente. Mas um dos quadros que ele pintou tratava da batalha marítima nas Ilhas Falkland... Ali dava para ver restos de um cruzador alemão que se chamava Leipzig. Ao fundo, navios de guerra ingleses fumegam. E na parte da frente um marujo se encontrava em pé sobre uma prancha ou sobre uma quilha que ainda restara do cruzador, em meio ás ondas. Ele segurava com uma ou com ambas as mãos uma bandeira, que parecia com as bandeiras que os skinheads da direita ainda carregam hoje em dia por aí, quando querem aparecer na televisão. Chamava-se O Último Homem...
E justamente desse quadro a Agfa-Especial de Marienchen conseguiu se lembrar...
Lógico! Porque a câmera dela era retrovidente...
Ainda me lembro como ela se postava na janela grande, curvada para frente, mas ficava olhando sobre os ombros...
E do mesmo jeito retorcido ela às vezes ficava parada conosco no povoado, sobre o dique, e, com a câmera virada para a frente, olhava para trás, como se o passado ficasse ali e, na frente, houvesse apenas ar...”
(trecho de A caixa)
“Nesse quadro, os pacientes eram descritos como ´apartados´ da realidade, das benções rudimentares da realidade laica, se não por completo, o que acontecia apenas nos casos mais graves, em alguns de seus aspectos mais fundamentais. A função do tratamento era construir pontes sobre este abismo, transladar os pacientes da sua perniciosa pocilga particular ao glorioso mundo das partículas discretas, onde seria sua a inestimável prerrogativa de novamente se admirar, amar, odiar, se rejubilar e uivar, de maneira razoável e equilibrada, consolando-se em companhia de outros na mesma enrascada.
A coisa toda revoltava Murphy, cuja experiência como criatura natural e racional obrigava-o a chamar de santuário o que os psiquiatras chamavam exílio e a considerar os pacientes não como banidos de um sistema de benefícios, mas como os que escaparam de um colossal fiasco. Se seu espírito se ajustasse, como de se esperar, ás coordenadas de uma caixa registradora, um dispositivo incansável, convertendo em números o mesquinho fluxo de caixa dos fatos cotidianos, então, a supressão desses fatos seria uma perda irreparável. Mas, não sendo esse o caso pois o que chamava de seu espírito estava mais para um espaço do que para um instrumento, lugar de cujas delícias estes mesmos fatos cotidianos o mantinham afastado, não era absolutamente natural que saudasse a sua supressão como a supressão de correntes?”
(trecho de Murphy)
“Mas não consigo discerni-la. Ela permanece tão nebulosa como em meu melhor poema—aquele do qual você caçoou tão horrivelmente na LITERATURNÏE ZAPISKI. Quando quero imaginá-la, tenho de me agarrar mentalmente a uma minúscula pinta marrom de nascença em seu antebraço aveludado, do mesmo modo como alguém se concentra em um ponto numa frase ilegível. Se ela talvez tivesse usado mais maquiagem, ou a usasse com maior constância, eu pudesse visualizar seu rosto hoje, ou pelo menos os delicados sulcos transversos de lábios secos, pintados de cor quente; mas não consigo, não consigo—embora ainda sinta seu toque fugidio de quando em quando na pele de cego dos meus sentidos, naquela espécie de sonho soluçante em que ela e eu desajeitadamente nos agarramos um ao outro através de uma névoa dolorosa, e não consigo ver a cor de seus olhos porque um brilho de lágrimas afoga suas íris.
Ela era muito mais jovem que eu—não tanto quanto era Nathalie dos lindos ombros nus e brincos longos em relação ao moreno Puchkin; mas mesmo assim havia uma margem suficiente para aquele tipo de romantismo retrospectivo que encontra prazer em imitar o destino de um gênio único (até o ciúme, até a sujeira, até a pontada de ver seus olhos amendoados se voltaram para seu loiro Cassio por trás do leque de penas de pavão), mesmo que não se possa imitar seu verso. Ela gostava dos meus, porém, e raramente bocejava como a outra fazia toda vez que os poemas do marido por acaso superavam a dimensão de um soneto. Se ela ficou um fantasma ara mim, devo ter sido um fantasma para ela: suponho que ela foi atraída apenas pela obscuridade de minha poesia; depois abriu um buraco em seu véu e viu o rosto pouco amável de um estranho.”
(trecho de “Que em Aleppo uma vez...”, um dos Contos Reunidos)
“Também me agradava, nas manhãs de primavera, perambular pelas ruas percorridas por bondes, vestidas com os toldos dos estabelecimentos comerciais. Comprazia-me o espetáculo dos grandes armazéns interiormente sombrios, as queijarias frescas como granjas com enormes pilões de manteiga nas prateleiras, as lojas com vitrines multicoloridas e senhoras sentadas junto aos balcões diante de leves rolos de tecido; e o cheiro de pintura nas lojas de ferragens, e o cheiro de petróleo nas despensas, se confundiam em meu sensório com o fragrante aroma de uma extraordinária alegria, de uma festa universal e perfumada, cujo futuro relator seria eu.
Nas gloriosas manhãs de outubro eu me sentia poderoso, eu me sentia compreensivo como um deus.
Se fatigado, eu entrava numa leiteria para tomar um refresco, o lugar sombrio, a decoração semelhante, me fazia sonhar com uma Alhambra inefável e via as chácaras da distante Andaluzia, via os terrenos empinados no pé da serra e, no fundo dos socavões, a faixa prateada dos arroiozinhos. Um vozerio de mulher se fazia acompanhar de um violão e, na minha memória, o velho sapateiro andaluz reaparecia, dizendo:
__ José, si era ma lindo que uma rrossa.
Amor, piedade, gratidão à vida, aos livros e ao mundo galvanizavam o nervo azul da minha alma...”
(trecho de O brinquedo raivoso)
“As senhoras… encarregaram os maridos de gravar bem na memória todos os detalhes do que acontecesse naquela noite na cada da Japonesa e que, se possível, se houvesse alguma guloseima interessante, quando ninguém estive olhando pusessem um pouco no bolso para elas, que afinal iam ficar sozinhas em casa entediando-se, enquanto eles faziam sabe lá o quê na festa. Claro que hoje não tinha importância se eles se embriagassem. Dessa vez a causa era boa. Que ficassem por perto de Don Alejo, o importante era isso, que Don Alejo os visse na sua comemoração, que de passagem e como quem não quer nada lembrassem-no da questão do terreninho e daquela partida de vinho que ele prometera vender-lhes com desconto, isso, que cantassem juntos, que dançassem, que aprontassem todas, hoje não tinha importância, desde que aprontassem junto com o senhor.
O povoado passou meses coberto de cartazes com o retrato de Don Alejo Cruz (…) e noite após noite os cidadãos da Estação El Olivo reuniam-se ali para alimentar sua fé em Don Alejo e organizar encontros e excursões pelos campos e povoados próximos para propagar aquela fé. Mas o verdadeiro centro da campanha era o estabelecimento da Japonesa (…) No decorrer do último mês, principalmente, quando a proximidade do triunfo, atiçou a verve da patroa, fazendo-a esquecer tudo que não fosse sua paixão política, a Japonesa, generosa, distribuía seu vinho a todo visitante cuja posição fosse vacilante ou ambígua, e no curso de algumas horas deixava-a firme como um peral ou afiada como uma faca (…)
__ Vou gastar todo o meu dinheiro, mas algum prazer eu preciso me dar, e que tudo isso sirva para que El Olivo tenha o futuro que nos promete o recém-eleito deputado Don Alejo Cruz, aqui presente, orgulho da Zona…”
“O primeiro dia de Obi no serviço público foi memorável, quase tão memorável quanto seu primeiro dia na escola da missão do campo, em Umuofia, quase vinte anos antes. Naquele tempo, homens brancos eram muito raros… O Sr. Jones era inspetor de escolas e era temido em toda a província… Visitava cada escola mais ou menos de dois em dois anos e sempre fazia algo de que todos se lembravam até a visita seguinte. Dois anos antes, ele havia jogado um menino pela janela da sala de aula. Dessa vez foi o diretor que se meteu numa encrenca. Obi nunca descobriu qual foi o problema, porque tudo foi tratado em inglês. O Sr. Jones ficou vermelho de raiva enquanto andava para lá e para cá, dava passadas tão largas que, a certa altura, Obi achou que ele ia passar direto por cima dele. O diretor, Sr. Nduka, ficou o tempo todo tentando explicar alguma coisa.
Cale a boca!, esbravejou o Sr. Jones, e completou com um tapa. Simeon Nduka era uma daquelas pessoas que haviam adotado os costumes dos brancos, numa fase bem inicial da vida. E uma das coisas que ele tinha aprendido em sua juventude era a grande arte da luta corpo a corpo. Num piscar de olhos, o Sr. Jones estava estatelado no chão e a escola inteira se transformou numa grande confusão. Sem saber por quê, professores e alunos fugira todos em desabalada carreira. Derrubar no chão um homem branco era o mesmo que desmascarar um espírito ancestral.
Aquilo tinha acontecido vinte anos atrás. Hoje, poucos brancos ousariam sonhar em dar um tapa num diretor de escola em seu local de trabalho e, de fato, nenhum faria tal coisa. O que era a tragédia de homens como William Green, o chefe de Obi.”
“... as convenções sociais, as gafes e o ridículo não significavam mais nada, e ele não queria mais se privar, em nome disso, daquela mulher que agora constituía sua única fonte de alegria. Sem ela, a amargura do sucesso social teria sido intolerável, e ele teria preferido ser o décimo ou o vigésimo dos homens em Roma, a governar assim um reino de desolação bárbara nos confins do Império, mas ninguém jamais lhe ofereceria tal alternativa, pois Roma não existia mais, fora destruída havia muito tempo, restavam apenas reinos bárbaros, uns mais selvagens que outros, aos quais era impossível escapar, e quem escapava à própria miséria não podia esperar mais do que exercer seu poder inútil sobre homens mais miseráveis que ele, como agora fazia Marcel com a obstinação impiedosa de quem conheceu a miséria e não lhe suporta mais o espetáculo repulsivo e não cessa de vingar-se na carne dos que lhe são afinal tão semelhantes. Talvez cada mundo não seja mais que o reflexo deformado de todos os outros, um espelho longínquo em que a sujeira parece brilhar como diamante, talvez não haja mais que um único mundo, do qual é impossível fugir, pois as linhas de seus caminhos ilusórios acabam por se cruzar aqui, ao lado da cama em que agoniza a jovem esposa de Marcel, uma semana depois de ter trazido ao mundo seu filho Jacques...”
(trecho de O sermão sobre a queda de Roma)
Quando tinha quatro ou cinco anos, Enid disse à sua mãe que havia ido ao escritório do pai e o vira sentado atrás da escrivaninha com uma mulher no colo. Tudo de que ela se lembrava daquela mulher, tanto na época quanto agora, se resumia ao fato de que ela usava um chapéu com muitas flores e um véu (algo bem fora de moda mesmo então), além de que a parte de cima do vestido ou da blusa estava desabotoada e um seio nu se projetava para fora, com o bico desaparecendo na boca do seu pai. Contara isso à mãe com a absoluta certeza de que havia visto a cena, dizendo a ela: “Uma frente dela estava enfiada na boca do papai”. Não conhecia a palavra que designava seios, embora soubesse que vinham em pares.
Sua mãe disse: “Vamos, Enid. Do que você está falando? O que é essa tal de frente?”
“Igual a uma casquinha de sorvete”, respondeu Enid.
Foi desse jeito que ela viu, exatamente. Ainda podia ver desse jeito. O cone cor de biscoito com sua porção de sorvete de baunilha apertada contra o tórax da mulher, a outra ponta espetada na boca do pai.
Sua mãe fez então algo muito inesperado. Abriu o vestido e pôs para fora um objeto esmaecido, que sacudiu com a mão. “Como isso aqui?”
Enid disse que não. “Uma casquinha de sorvete”.
“Então foi um sonho”, disse sua mãe…
(trecho do conto-título de O amor de uma boa mulher)
“Fomos primeiro à praça e entramos na fila para tirar uma foto no Portão da Paz Celestial. Depois entramos na fila do Mausoléu do Presidente Mao para prestar nossas reverências. Enquanto contemplava o presidente deitado em seu sarcófago de vidro, lembrei de quando chegara a notícia de sua morte, dois anos antes. A sensação fora de que o mundo desmoronava e o chão se abria sob nossos pés. Acordamos para o fato de que não há imortais neste mundo. Nem em sonho imaginávamos que o presidente Mao morreria um dia, mas acontecera. Acreditamos, naquele momento, que a morte dele seria o fim da China. Dois anos mais tarde, o país não apenas sobrevivera como melhorava a cada dia (…) Numa loja de departamentos em Xidan comprei três bolsas pretas de couro sintético, uma para mim e duas para meus companheiros de armas. Comprei também um lenço cor-de-rosa para minha noiva. Ela me fora apresentada por um parente distante quando eu trabalhava na fábrica de processamento de algodão. Eu titubeara por um momento e ele se zangara: Deixe de bobagem! Tem um porco cevado fuçando na sua porta e você acha que é um vira-lata arranhando a soleira!”
E ainda:
“Fomos ainda a um restaurante em Xidan e ficamos duas horas na fila para comer uma porção de jiaozis feitos a máquina, recheados com carne bem gorda, daqueles que espirram óleo a cada mordida. A máquina funcionava atrás de um balcão baixo. Do lado de cá do balcão havia umas dez mesas. Para mim, aquilo era uma grande invenção, bastava colocar farinha, água e carne de um lado e os jiaozis saíam prontos do outro lado, caindo um atrás do outro numa panela de água borbulhante. Era extraordinário! Quando voltei para casa, contei tudo a minha mãe, que não acreditou em uma palavra do que eu disse. Pensando bem, os jiaozis de máquina tinham massa grossa e pouco recheio. Metade se desfazia na panela. Nem eram bonitos, nem saborosos. Mas, naquela época, comer aqueles jiaozis de Xidan já era algo de que se gabar em casa. Hoje em dia, ninguém mais quer saber de jiaozis de máquina, e os restaurantes fazem questão de colocar um aviso garantindo que a iguaria é feita a mão. E o recheio vegetariano superou o gorduroso na preferência popular. Isso ilustra bem como as coisas mudaram”.
“Rosa Amalfitano e Jordi Carrera começaram a se escrever uma semana depois que os Amalfitano chegaram ao México. O primeiro a escrever foi Jordi. Ao fim de uma semana estranha na qual mal conseguiu pregar os olhos resolveu fazer uma coisa que nunca antes, em seus dezessete anos de vida, tinha feito. Comprou, depois de muita hesitação, o cartão-postal que lhe pareceu mais apropriado, a reprodução de uma charge de Taburini e Liberatore (…) e depois de escrever uma ou duas frases que lhe pareceram idiotas, espero que esteja bem, sentimos sua falta (por que o maldito plural?), pôs no correio e tentou em vão esquecê-lo.
A resposta de Rosa, escrita à máquina, ocupava três folhas. Dizia mais ou menos que estava ficando adulta em marcha forçada e que a sensação que isso lhe produzia era, no início, maravilhosa e estimulante, mas depois,como sempre, a gente se acostumava. Também falava em Santa Teresa e de como alguns imóveis eram bonitos, construções da época colonial, uma igreja, um mercado com arcadas e a casa-museu do toureiro Celestino Arraya, que visitou mal chegou, como que atraída por um ímã. O tal de Celestino, além de bonitão, era uma glória local morto na flor da idade (…) e no cemitério de Santa Teresa se erguia uma estátua impressionante dele, mas só pensava visitá-lo mais tarde. Parece uma escultora ou uma arquiteta, pensou Jordi com desalento ao ler pela décima vez a carta.
Levou vinte dias para responder. Desta vez mandou um postal enorme com um desenho de Nazario. Ante a impossibilidade de dizer o que de fato precisava dizer tratou se narrar, sem pé nem cabeça, mas cingindo-se estritamente à verdade, sua última partida de basquete (…) Sobre si mesmo insinuava que tinha jogado mal, distraído, sem vontade de correr, e com isso queria dizer que estava um pouco triste e sentia a falta dela.
Desta vez a resposta de Rosa se limitava a duas folhas. Escreveu sobre suas aulas de inglês , os passeios que dava ao acaso pelos bairros de Santa Teresa, a solidão que considerava um bem precioso e que se dedicava à leitura e ao autoconhecimento, à cozinha mexicana (aqui, de passagem, mencionava o feijão com lingüiça catalão, num tom que pareceu desrespeitoso e injusto a Jordi), algumas das quais já se animava a fazer para seu pai (…)
Em poucas palavras, escrevia ela no fim da carta, era feliz e a vida não podia ser melhor. Nesse aspecto, confessava, me pareço um pouco com Cândido, e meu mestre Pangloss é este ambiente mexicano fascinante. E meu pai também, mas não muito, na realidade nada, não, meu pai não se parece nem um pouco com Pangloss.
Jordi leu a carta no metrô. Não tinha a menor ideia de quem eram Cândido e Pangloss, mas pareceu-lhe que sua amiga estava nos portões do Paraíso enquanto ele continuava para sempre no Purgatório.”
“Quando Ana disse que não merecia os aposentos de rainha, ela não pretendia admitir a culpa, mas dizer esta verdade: não sou digna disso, e não sou digna porque fracassei. Uma única coisa ela se propôs a fazer nesta vida: conquistar Henrique e conservá-lo. Ela o perdeu para Jane Seymour, e nenhum tribunal a julgará mais severamente do que ela julga a si mesma. Desde que Henrique partiu a galope ontem, deixando-a para trás, ela tem sido uma impostora, como uma criança ou um bobo da corte, vestida com o figurino de uma rainha e agora obrigada a viver em aposentos de rainha. Ela sabe que o adultério é um pecado e que a traição é um crime, mas o pior é estar do lado perdedor.
Richard enfia a cabeça pela porta outra vez e pergunta:
__ Sua carta, devo escrevê-la para o senhor? Para poupar seus olhos?
Ele diz:
__ Ana está morta para si mesma. Não teremos mais problemas com ela.”
(trecho de O Livro de Henrique)
“Tive duas vidas no final de 1962 e no começo de 1963. A boa era em Jodie (…) A outra era em Dallas.
Oswald e Marina voltaram. Em Dallas, a primeira parada deles foi numa lata de lixo na esquina da West Neely. Mohrenschildt os ajudou na mudança. George Bouhe não estava visível. Muitos menos os outros emigrados russos. Lee os afastara. Eles o odiavam, escrevera Al nas suas anotações, e embaixo: Era que ele queria.
O prédio decadente de tijolos vermelhos na rua Elbeth, 604, fora dividido em quatro ou cinco apartamentos lotados de gente pobre que trabalhava muito, bebia muito e produzia hordas de crianças catarrentas a berrar. O lugar realmente fazia o domicílio dos Oswald em Fort Worth parecer bom.
Eu não precisava de auxílio eletrônico para monitorar o estado de decomposição do casamento deles (…) Certo dia, em novembro de 62, voltei da biblioteca e observei Lee e Marina na esquina da West Neely com a Elsbeth, gritando um com o outro. Várias pessoas (principalmente mulheres àquela hora do dia) tinham saído á varanda para observar (…) Eles discutiam em russo, mas o mais recente pomo da discórdia era bastante claro com o dedo apontado de Lee. Ela usava uma saia preta reta—não sei se naquela época já se chamavam saia-lápis—e o zíper do lado esquerdo estava meio aberto. Provavelmente só s e prendera no tecido, mas ao ouvi-lo furioso a gente ficava com a impressão de que ela estava caçando homens.
Ela jogou o cabelo para trás, apontou June e depois fez um gesto na direção da casa que agora habitavam—as calhas quebradas pingando água preta, o lixo e as latas de cerveja no gramado careca na frente—e grito com ele:
__ Você diz mentiras alegres depois traz mulher e filha para essa pocilga!
Ele corou até a raiz do cabelo e cruzou os braços com força sobre o peito magro, como que se quisesse ancorar as mãos e impedir que causassem danos. Poderia ter conseguido—dessa vez, pelo menos—se ela não tivesse rido e depois girado um dedo em torno da orelha num gesto que deve ser comum a todas as culturas. Ela começou a se virar. Ele a puxou de volta, esbarrando no carrinho e quase o derrubando. Então bateu com força. Ela caiu na calçada rachada e cobriu o rosto quando ele se curvou sobre ela.
(…)
__ Aquele homem está batendo na mulher! Vá até lá e dê um fim naquilo!
__ Não, senhora—disse eu. A minha voz estava instável. Pensei em acrescentar: Não vou me meter entre marido e mulher. Mas era mentira. A verdade é que eu não faria nada que pudesse perturbar o futuro.
__ Seu covarde—disse ela.
Chame a polícia, eu quase falei, mas engoli bem na hora. Se essa ideia não estivesse na cabeça dela e eu a pusesse lá, também poderia mudar o rumo do futuro. A polícia veio? Alguma vez? O caderno de Al não dizia. Eu só sabia que Oswald nunca seria preso por agressão conjugal. Acho que naquela época e naquele lugar poucos homens seriam.
Ele a arrastava pela calçada com uma das mãos e empurrava o carrinho com a outra. A velha me deu um último olhar arrasador e depois voltou com esforço para dentro de casa. Os outros espectadores faziam o mesmo. Fim do espetáculo…”
“É mesmo, alegrei-me, conte como conseguiu.
Venha. Vou lhe mostrar como foi.
Para mim, você pode mostrar depois, disse a mãe, e desapareceu.
Nós descemos ao ateliê, onde a cadeira e o equipamento continuavam no mesmo lugar. A luz estava apagada (…)
Venha, diz o pai, e, na suave treva, eu o vejo tirar de uma bandeja grande e cheia de líquido uma placa escura (…) Sempre que estou aqui, sozinho com ele, invade-me um temor repleto de expectativa, diferente de quando estou sozinho com ele num cômodo iluminado. Porque é no escuro que se engendra o feito de cada um, é possível levá-lo á claridade e devolvê-lo à escuridão, na escuridão ele é concebido.
É um cachorro, digo com voz abafada.
É Hützi, corrige ele. E me mostra outra placa. E aqui?
Bützi, exclamo. Quer dizer que você conseguiu fotografá-las!
Sim, mas uma por vez.
Elas se detestam. E agora?
Vou pôr as duas numa placa e fazer uma prova. E, na fotografia, Hützi e Bützi estarão juntas e em paz, como é seu hábito em casa: o presente de aniversário.
As duas placas fotográficas voltam para a bandeja grande de vidro. Eu olho para ele, tenho a impressão de que a escuridão ficou mais clara. Reconheço as suas feições carnudas, nas quais se esboça um ar de triunfo. Já não é uma sombra, voltou a ser uma forma.
E digo: Acontece que não é verdade, pois elas não ficaram juntas aqui. Ao mesmo tempo, sinto crescer em mim uma admiração por ele, ainda que minhas palavras só contenham crítica.
Que importa?, diz o pai, assombrado, Isso se chama montagem fotográfica.
Mas não é verdade, teimo. Você faz isso e acha muito divertido, mas não passa de fingimento.
Ora essa!, ele se irrita, Aí é que está a graça. Você ainda não entendeu…”
“Claro, continua difícil escrever sobre um fenômeno como Mandela em termos que não sejam hagiográficos. Mas ele não é uma figura divina, apesar de sua enorme popularidade—e essa popularidade, na era da negociação bem-sucedida entre os brancos e negros, estende-se em todos os tipos de direções, indo além da confiança e da reverência que lhe devotam os negros e aqueles brancos que foram ativos na luta pela eliminação do apartheid. Enquanto escrevia este texto, escutei no noticiário que uma pesquisa entre negociantes sul-africanos revelou que 68% desejam ver Nelson Mandela como futuro presidente da África do Sul. Longe de assumir um status celestial, a qualidade de Mandela é, ao contrário, plenamente a de um homem, a essência de um ser humano em tudo o que termo deveria significar, poderia significar, mas raramente significa. Ele pertence completamente a uma vida real que se passa em determinado lugar e época, e na relação desse ponto específico do espaço e tempo com o mundo. Está no epicentro de nosso tempo, o nosso na África do Sul e o de vocês onde quer que estejam.
Pois há duas espécies de líder. Há o homem ou a mulher que criam a identidade—sua vida—a partir do impulso da ambição pessoal e há o homem ou a mulher que criam uma identidade a partir da resposta às necessidades das pessoas. Para o primeiro, o impulso vem limitado de seu interior; para o outro, é uma carga de energia que provém das necessidades de outros e das demandas que esses fazem. O dinamismo de Mandela como líder é ter dentro de si a qualidade altruísta de receber essa carga de energia e agir sobre ela...”
(trecho de um texto de 1993 sobre Nelson Mandela, em Tempos de reflexão: de 1990 a 2008)
“Pois agora chegara aquele momento, aquela hesitação, quando a aurora treme e a noite se detém, quando uma pena, se posta na balança, fará descê-la. Uma única pena, e a casa, afundando, caindo, teria virado e se precipitado em direção às profundezas da escuridão. Na sala em ruínas, pessoas em piquenique teriam esquentado suas chaleiras; amantes teriam ali buscado abrigo, deitados nas tábuas nuas; e o pastor teria guardado sua comida em cima dos tijolos caídos, e o vagabundo teria dormido enrolado no casaco para se proteger do frio. Então, o teto teria caído; urzes e cicutas medrando, curvando-se, teriam fechado as passagens, os degraus e as janelas, teriam crescido, desigual, mas luxuriosamente, sobre o entulho, até que algum intruso, tendo-se perdido, poderia ter dito, apenas por causa de um lírio-tocha misturado às urtigas, ou um caco de porcelana no meio das cicutas, que aqui, alguém, uma vez, vivera; existira uma casa.
Se a pena tivesse caído, se tivesse feito descer a balança, a casa inteira teria mergulhado nas profundezas para assentar nas areias do olvido. Mas havia uma força em ação; algo não muito consciente; algo que olhava de esguelha, algo que cambaleava; algo não inspirado a conduzir o seu trabalho segundo um ritual majestoso ou sob um cântico solene. A Sra. McNab resmungava; a sra. Bast, sua parceira, ringia. Estavam velhas; estavam emperradas; doíam-lhe as pernas. Vinham, afinal, com seus baldes e vassouras; punham-se ao trabalho. De repente: podia a Sra. McNab verificar se a casa estava pronta, escreveu uma das jovens; podia ela arrumar isto; podia arrumar aquilo; tudo na correria...”
(trecho de O tempo passa)
“A filosofia moral é o exame das mais importantes entre as atividades humanas, e penso que ela requer duas coisas. O exame tem que ser realista. A natureza humana, em oposição às naturezas de outros hipotéticos seres espirituais, tem certos atributos que se podem descobrir, e eles devem ser ponderados, adequadamente em qualquer discussão de moralidade. Em segundo lugar, como um sistema ético não pode deixar de sugerir um ideal, ele deve sugerir um ideal digno. A ética não deve ser uma mera análise da medíocre conduta comum; deve ser uma hipótese sobre a boa conduta e sobre como ela pode ser alcançada. Como podemos nos tornar melhores é uma questão à qual os filósofos morais devem tentar responder. E, seu eu estiver certa, a resposta virá ao menos em parte na forma de metáforas explanatórias e persuasivas... Antes, porém, gostaria de mencionar muito rapidamente duas concepções fundamentais de meu argumento. Se qualquer uma delas for negada, o que seguir será menos convincente. Concebo que os seres humanos são naturalmente egoístas, e que a vida humana não tem finalidade externa, ou télos. Que os seres humanos são naturalmente egoístas parece algo evidente, quando quer e de onde quer que olhemos para eles, apesar da existência de muito poucas exceções aparentes. Sobre a qualidade desse egoísmo, a filosofia moderna encontrou algo a dizer. A psique é um indivíduo historicamente determinando cuidando de si de maneira implacável (...) Normalmente, sua consciência não é um vidro transparente através do qual ela enxerga o mundo, mas uma nuvem de devaneios mais ou menos fantásticos designada a protegê-la da dor (...) Que a vida humana não tem finalidade externa ou télos é uma visão tão difícil de defender quanto a visão oposta, e me permito simplesmente afirmá-la. Não vejo nenhuma evidência sugerindo que a vida humana não seja algo autônomo. Há decerto muitas finalidades no interior da vida, mas não existe uma finalidade geral garantida externamente do tipo que os filósofos e teólogos costumavam procurar. Somos o que parecemos ser, criaturas mortais transitórias sujeitas à necessidade e ao acaso.”
(trecho de A soberania do Bem)
[1] À exceção de uma parte dos contos de Nabokov (a Companhia das Letras publicou duas coletâneas há alguns anos). Entre as novas versões importantes, lembro especialmente as de alguns clássicos italianos, como
Os noivos e
Decamerão, e como não mencionar, nem que seja de passagem, a versão de Jorio Dauster para uma importante e esclarecedora edição de
O retrato de Dorian Gray?
[2] “Sterniano” seria mais preciso.
[3] Esse título foi cortado na lista de A TRIBUNA por falta de espaço; é bom ressaltar que se trata de um segundo volume—o primeiro foi, que compila ensaios de 1954 a 1989, foi traduzido em 2012. O outro título não incluído (por falta de tempo) foi
A soberania do Bem.
[4] O qual, após circular durante anos numa tradução de Luiza Lobo que teve variações de título (
O farol, Passeio ao farol, Ao farol, Rumo ao farol)—há uma outra, de Oscar Mendes—ganhou duas novas versões: uma, feita por Denise Bottmann (L&PM), que acaba de ganhar o prêmio da Biblioteca Nacional por sua tradução de
Mrs. Dalloway; a outra, feita pelo mesmo Tomaz Tadeu do título arrolado acima, e também lançada pela Autêntica. Os woolfianos brasileiros respiram aliviados e agradecem.